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Foi uma noite abafada. Acordei no meio dela, empapado de suor. Ao levantar de manhã, só queria poder tomar uma ducha. Mas, em São Paulo, essa comodidade se tornou um sonho. Apenas por desencargo de consciência, abri a torneira. Nem uma gota, nada. Vai ser mais um dia daqueles.
Por termos dois banheiros, conseguimos separar as funções. O da entrada é para as necessidades básicas e a porta dele agora vive fechada, senão o cheiro contamina nosso direito de ir e vir dentro de casa. Descarga, uma vez a cada três ou mais dias. No final de semana passado uma amiga veio fazer uma visita e precisou ir até ali. Dei na mão dela um balde d’água e desejei boa sorte. É o tipo de intimidade que nunca imaginei ser necessário ter.
Já o banheiro da suíte ficou para os procedimentos de limpeza a seco. Lenços umedecidos, álcool gel, enxaguante bucal. Na conta do mês, o gasto com esses itens quadruplicou. A louça não sai mais do armário, substituída por pratos e talheres de plástico. Que costumam ir direto para o lixo logo após o uso.
Enquanto tomo café em um copo descartável, ligo o noticiário matinal. Escolas dispensando alunos devido à falta de água. Empresas demitindo funcionários e abandonando escritórios. Donos de lava-rápido, pet shops e tinturarias se unem em protesto no centro da cidade. Mais um homicídio cometido entre vizinhos motivado pelo uso de uma mangueira. E o governador anuncia novos investimentos nas polícias para conter os anseios da população.
Qualquer semelhança entre esses primeiros parágrafos e um futuro próximo pode não ser mera coincidência. Desde 2013 pelo menos, quem mora em São Paulo vem acompanhando diariamente as últimas novidades sobre os reservatórios de água. Virou uma pauta cotidiana, como assistir aos gols da rodada. A gente se acostumou a esse tipo de notícia. Por isso, nem faz muito sentido chamar de crise hídrica o que era uma tragédia anunciada. Não é que a gente não sabia que isso ia acontecer.
O foco aqui é em São Paulo por ser onde fica a nossa base. Porém, sabemos que a escassez também vem atingindo outros estados por conjunções de fatores muito parecidos. A conta envolve questões ambientais, incompetência das autoridades responsáveis e uma cultura de desperdício nada sustentável.
É irônico pensar que, na capital desse estado tão desidratado, qualquer pancada de chuva costuma resultar em alagamentos. Assistir ao documentário “Entre Rios” ajuda a entender os motivos:
Basicamente, São Paulo foi construída em cima de uma volumosa bacia hidrográfica (veja nesse mapa colaborativo aqui). As reformas urbanas que vieram com o crescimento econômico canalizaram e enterraram os rios embaixo de avenidas. E quando a chuva cai, são esses canais que a água procura, daí as enchentes.
Porém, dois grandes rios continuam correndo a céu aberto no meio da cidade: o Tietê e o Pinheiros. Eles poderiam contribuir para a mobilidade urbana e o turismo, como em Chicago, Berlim ou Paris. E, em tempos de seca, poderiam também ser uma fonte de água que ajudaria bastante no abastecimento da população. Isso se não estivessem mortos.
Em visita recente ao Brasil, a pesquisadora da Universidade de Stanford e diretora do programa Water in the West, Newsha Ajami, ficou surpresa ao descobrir que a mesma cidade que está à beira do colapso hídrico possui um rio como o Tietê. Ninguém levou em consideração descontaminá-lo? Bem, o governo estadual torrou nas duas últimas décadas uma quantia substancial de dinheiro com esse objetivo. Quem passa pelo rio diariamente pode atestar se os investimentos deram retorno.
Sabemos que a população aumentou em geral. E, quanto maior o número de pessoas, maior a necessidade de água e o esgoto gerado. A maneira míope como nos acostumamos a consumir esse bem vital não se sustentaria por muito tempo. Varrer calçada com mangueira, lavar o carro toda semana e tomar de dois a três banhos por dia são comportamentos que não têm mais espaço em um mundo de recursos naturais limitados. Como a inércia é uma característica humana nata, a população deveria ter sido estimulada por seus representantes a mudar esses costumes ambientalmente irresponsáveis. Isso muito antes de atingirmos o volume morto.
Também sabemos que o planeta vem sofrendo um processo de mudanças climáticas, trazendo seca e altas temperaturas para a região sudeste como nunca antes na história. Não é de hoje que São Paulo deixou de ser a terra da garoa. Os responsáveis pelo fornecimento da água não realizaram um planejamento de longo prazo que oferecesse margens de segurança para períodos adversos como esse de agora.
Em 2009, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente elaborou um documento com o auxílio de 200 especialistas prevendo um cenário pessimista para a bacia do Sistema Cantareira nos anos seguintes. O trabalho já propunha naquela época medidas para promover uma gestão mais eficiente dos recursos hídricos. Segundo o Ministério Público, em 2012 a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) enviou um relatório à Bolsa de Nova York alertando seus acionistas sobre os riscos da estiagem impactar os investimentos. Porém, somente em março de 2014 o governo de São Paulo adotou o incentivo que está em vigor atualmente, dando descontos de até 30% na conta para os contribuintes que consumirem 20% menos de água. E somente agora, em janeiro de 2015, foi anunciada a criação de um comitê interdisciplinar para enfrentar a questão.
Apesar do candidato a governador que acabou reeleito ter afirmado categoricamente durante a corrida eleitoral que a água não faltaria, São Paulo inteira sabe que o racionamento já é realidade. É só entrar nas redes sociais para encontrar novos relatos sobre a penúria. Dependendo do bairro, faz meses que a água tem horário certo para faltar todos os dias. E, apesar do pesar dos pesares, de fato eu e você podemos e devemos contribuir para reduzir danos. Não só a gente, como também as indústrias e o agronegócio, que são os maiores consumidores de água. Qualquer mudança no sentido de economizar recursos naturais é bem-vinda. Por exemplo, será que construir uma nova caixa d’água é uma solução melhor do que captar e reutilizar o recurso através de uma cisterna?
Ao mesmo tempo, gostaríamos também de saber das autoridades o que está sendo feito para sanar os vazamentos na rede de distribuição, onde mais de 30% da água tratada é desperdiçada antes de chegar às torneiras. Era bom ter visto isso aí antes de começar os cortes no fornecimento, não? Aumentar a eficiência é sempre melhor do que economizar na emergência. Alguém discorda?
Para o mal ou para o bem, o ser humano nunca deixa de nos surpreender. No Hypeness a gente vive pesquisando iniciativas inovadoras no campo da sustentabilidade para servirem de inspiração (aqui, aqui e aqui tem exemplos). Dado o cenário crítico, traz esperança ver uma porção de ações nesse sentido brotando voluntariamente por aí. Desde pessoas relatando como estão economizando água das formas mais criativas possíveis, até grupos púbicos que promovem a construção colaborativa de cisternas caseiras.
Agora que esgotamos um modelo e estamos todos juntos correndo com baldes atrás do prejuízo, talvez seja o momento para uma nova cultura florescer. Baseada na responsabilidade ambiental em vez da exploração até a última gota. Na comunicação transparente em vez da demagogia política. No coletivo em vez do individualismo. E no compartilhamento em vez da competição. Essas mudanças devem partir de todos nós, sem Deus dará. Ou a gente muda, ou o planeta segue sem a gente.
Foto destaque © Mundano via ; Imagem 01 via; Imagem 02 via; Imagem 03 © Rico Russo Jr via; Imagem 04 via; Imagem 05 via; Imagem 06 via; Imagem 07 via; Imagem 08 via; Imagem 09 via; Imagem 10 via; Imagens 11 e 12 © Mídia NINJA via; Imagem 13 via; Imagem 14 via; Imagem 15 via; Imagem 16 via; Imagem 17 via; Imagem 18 © Mídia NINJA via
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