Empreendedorismo

Fomos acompanhar a montagem de uma feira livre de rua na região central de São Paulo

16 • 07 • 2015 às 09:21
Atualizada em 16 • 04 • 2018 às 00:57
Daniel Boa Nova
Daniel Boa Nova Redator / Roteirista / Produtor de conteúdo

Por não ser um especialista no tema, não posso afirmar com segurança. Mas, se fosse para chutar, diria que logo após ancorar as caravelas, rezar uma missa e ter os primeiros contatos com os povos nativos, uma das medidas seguintes tomadas pelos portugueses na Terra de Vera Cruz foi organizar uma feira livre.

Cada vez que passo por uma, tenho a sensação de encontrar um elo perdido na história humana. Imagino que, com uma ou outra diferença de contexto, elas sempre funcionaram regularmente da mesma forma em qualquer lugar do mundo. Gritaria para vender, correria para comprar, encontros, desencontros, disputas e confraternizações que geram histórias a perder de vista.

Todo mundo tem alguma para contar envolvendo a feira. Pode ser uma memória afetiva, de ir até ela acompanhado da mãe ou da babá e ter feito amigos por lá.  Pode ser o trauma de ter morado na rua de uma, convivendo com o barulho na madrugada, os transtornos para ir e vir e o cheiro de peixe no fim do evento. Ou pode ser apenas uma lembrança sensorial. De experimentar as frutas cortadas na hora, comer um pastel e tomar um caldo de cana em meio àquele mundo de cores, aromas, sabores e sons.

Além da diversidade, as feiras de rua também têm uma vida meio misteriosa. Elas surgem da noite para o dia e somem logo após a hora do almoço. Daí, na semana seguinte, tudo de novo. Um bom panorama sobre os bastidores desse evento pop up ancestral pode ser encontrado em Dias de Feira“, de Júlio Bernardo. Filho de feirante, o autor passou uns bons anos de vida cortando miúdos de boi e desossando frangos para vender em sua banca. Após ler o livro, surgiu a ideia de fazer uma matéria no Hypeness mostrando como acontece essa mágica de madrugada pelas ruas da cidade e quem são seus responsáveis.

Foi assim que, em um sábado à noite, enquanto muitos caíam na balada, assistiam a uma série, transavam ou simplesmente dormiam, saí caminhando até a rua Sebastião Pereira na intenção de acompanhar a montagem da sua feira de domingo. É importante pontuar que, pela lei municipal de São Paulo, esse processo deve ocorrer no período entre 6h e 7h30. Porém, pelas reclamações que li na internet relacionadas ao descumprimento desses horários, desconfiava que seria melhor me adiantar caso não quisesse perder o início da movimentação.

Fui jantar com minha mulher e, ao retornar por volta das 22h30, dei uma passada no local. Naquele momento tinha apenas um caminhão sendo descarregado por um trio com idades e estilos distintos. Cheguei neles, falei sobre a matéria e perguntei a que horas deveria chegar para acompanhar a montagem. Mesmo no meio da função, foram receptivos e me disseram que o melhor seria por volta das 3 ou 4 horas, porque eles ali só estavam descarregando. Só nessa curta troca de ideias já descobri algo que não sabia: quem traz as estruturas e mercadorias não necessariamente é o mesmo que monta a banca e faz as vendas. São células diferentes na cadeia produtiva. Aqueles três tinham passado na Ceagesp para comprar os alimentos, parado ali e, na sequência, iriam para outro ponto de feira fazer o mesmo processo. Só mais tarde é que viriam os responsáveis pela parte comercial.

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Passavam das 3h30 quando retornei ao local. Ao longo da rua, 5 ou 6 caminhões repetiam o procedimento de descarregamento que eu vira horas antes. O primeiro contato que tentei foi com uma família de orientais. Sem me olhar, a mulher para quem dirigi a palavra respondeu ao meu pedido de conversa com um “Ai, eu não quero, não”. Ok, vamos ao próximo.

Uns 50 metros à frente tinha outro grupo movimentando caixas ao redor de um caminhão-baú. Me apresentei a um deles e perguntei se toparia conversar. Fui encaminhado para o dono da banca.

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Wilson não vetou e nem topou. Não é que tenha se recusado a falar, mas estava ocupado. E, imagino eu, também um pouco desconfiado. Que tipo de maluco aparece às 4 da manhã querendo bater papo no meio da rua?

Disse a ele que esperaria até quando estivessem mais tranquilos e me sentei logo ao lado, na guia, já pensando que essa seria uma pauta dura de roer. Poucos minutos depois, um dos seus ajudantes se aproxima trazendo um caixote vazio: “Aí, mano, senta aqui em cima porque os mendigos ficam por aí e é zoado”.

Muito obrigado, sem palavras.

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Fico observando os cerca de 8 caras acomodarem orquestradamente no asfalto os tradicionais recipientes plásticos. Que, no caso da empresa do Wilson, trazem alface, couve-flor, rúcula, beterraba e outras espécies com folhas.

Galochas, aventais, boné. Os acessórios não seguem um padrão. O único uniforme usado por todos é calça jeans e moletom. Uns cantam enquanto trabalham, outros assobiam. A grande maioria o faz em silêncio, falando e interagindo apenas no essencial: “Aqui tem 24 maços”, diz um. “Então traz a caixa toda”, o outro responde.

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Moradores de rua dormem nas calçadas empacotados nas suas mantas, alheios ao vai-e-vem. Um botequim permanece aberto, pronto para o happy-hour dos trabalhadores da madrugada. De lá se ouve o som dos Racionais e das bolas de bilhar se chocando. Novos caminhões aportam no local.

O baú do Wilson vai sendo esvaziado e o cheiro das hortaliças se torna mais presente. A maior parte dos caixotes desce para o asfalto. O restante é realocado em um veículo de menor porte, cujo destino é uma outra feira na Vila Mariana. Pergunto se aquelas mercadorias vinham da Ceagesp e me dizem que não: foram compradas na tarde da véspera em chácaras na região de Mogi das Cruzes e Biritiba-Mirim.

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Quando as bancas começam a ser montadas, o ruído é inevitável. Algumas são de metal com pés articulados. Outras seguem o modelo tradicional com cavalete e tampo de madeira separados.

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A velocidade com que sobem é impressionante. Vejo um cara botar de pé sozinho e rapidamente uma banca com pelo menos uns 30 metros de comprimento. Logo atrás dela, melancias enfileiradas aguardam comportadamente a vez de entrar em ação. Pergunto seu nome e se posso tirar fotos da operação. Everton me responde que sim, sem problemas. E ficamos de nos falar depois, quando seu trabalho já estivesse mais encaminhado.

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Passam das 4h40. No meu raio de visão, pelo menos umas 70 pessoas no batente. Como ainda sobram uns bons espaços na rua para serem preenchidos, pergunto ao Bahia, colaborador do Wilson, sobre o critério para definir quanto cada banca ocupa. Ele me diz que vai de acordo com o registro na Prefeitura: “O pessoal acha que é só chegar e montar, né?”. Feira não é bagunça.

Falando no poder público, uma reclamação ouvida foi a dele apresentar o ônus sem oferecer o bônus. Banheiros, por exemplo, são uma reivindicação. Os feirantes contam com os bares que estiverem abertos ou com a própria rua para fazer suas necessidades: “Mija atrás aí, em qualquer lugar. Não tem jeito, mano!

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Com as mercadorias a postos, o dono de uma banca acerta em cash com seus carregadores. Um que retornava do botequim recebe uma chamada com a delicadeza típica daquele contexto: “Vai logo, vagabundo! Senão você vai ver quanto eu vou te pagar!”. Na sequência, o patrão vira para o lado e solta outro comando: “Ajuda a puxar lá, ô macaquinho!”. As respostas são no mesmo tom de carinho bruto. Além dessas atividades de Recursos Humanos e gerenciamento de projetos, o network também é feito ali no boca a boca: “Já avisei o cara: se eu ficar com uma banquinha dessas por lá, vou arrepiar!”.

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Embora sejam minoria, há várias mulheres trabalhando no pedaço. E ninguém mexe com elas. Também vejo crianças brincando de esconde-esconde por trás dos caixotes enquanto os pais montam suas bancas. Apesar de ser um trabalho duro realizado de madrugada e da fama de malandro que costuma forrar a cama dos feirantes, o ambiente que testemunho está mais para negócios familiares.

Dona Glória, que não me deixa tirar fotos suas por achar que o pessoal na internet depois zoa, é um exemplo:  “Os meus avós tinham banca. Vinham com carroça de burro. Tinham chácara na Freguesia do Ó e vinham vender aqui no Largo do Arouche. Vendiam em cima do saco de estopa.”.

Além de levar adiante a tradição comercial da família de origem portuguesa, Dona Glória também é um caso raro de feirante de rua que ainda hoje mantém os pés na terra: “Meu pai sempre teve chácara, a gente sempre plantou e vendeu. Acho que de produtor o que restou aqui é só nós. A família toda planta e vende. É o nosso trabalho. Trazer alimento pro povo não é brincadeira, né? Até preparar a terra, semear, plantar e colher… não é fácil, não. Pode estar chovendo, eu trabalho debaixo de chuva, sol queimando, o que for. Agora o resto aí tudo compra e vende. Mas nós não: a gente planta lá em Mairiporã e vende aqui.”

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Uma Parati antiga se aproxima baforando etanol e trazendo a lona de uma barraca empinada no teto. Seu dono é conhecido pelos vizinhos como Negão. E a manobra que ele faz para estacionar o automóvel poderia estar em um tutorial de baliza do YouTube.

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Negão vende temperos em uma pequena banca posicionada no meio da rua. Provavelmente, é essa a razão para ele ter chegado mais tarde do que os demais. Sua lojinha é mais rápida de montar e, se ele fizesse isso mais cedo, seria um obstáculo para os caminhões que não param de chegar.

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Volto para conversar com Everton, o lobo solitário da banca quilométrica. Morador da Zona Leste, lá se vão duas décadas desde que começou a trabalhar na feira: “Hoje em dia tem muito mercado, sacolão. Aí compete, né? O pessoal não quer saber não. Aí vem na feira e fala que lá é mais barato, que lá é melhor. Atualmente, ele ocupa o cargo de feirante apenas aos domingos. Durante a semana, bate cartão em outro emprego. Os donos da maior parte dos 30 metros da banca são na verdade seu sogro e cunhado.

As frutas que Everton comercializa vêm direto da Ceagesp, sem que ele saiba como, onde e por quem foram produzidas. Tímido, ele não me permite tirar uma foto sua, apenas das mercadorias. Mas me pergunta simpaticamente: “Você tá fazendo essa pesquisa por quê? Quer trabalhar na feira?”. Entre risos, conto para ele do Hypeness e explico a pauta. Everton sintetiza: “Entendi! É tipo Comando da Madrugada, né?“. Nunca tinha pensado dessa forma, mas sem dúvida o programa de Goulart de Andrade é sim uma referência. E, obviamente, estamos ali na madrugada.

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Pouco depois das 5h30, o lugar já tem a imagem e semelhança de feira. Frutas e verduras dispostas, assim como a banca de peixe e do pastel. Apenas alguns poucos retardatários ainda montam estruturas.

Aumenta o volume do burburinho tanto nas ruas como no boteco. Quem já encerrou a etapa de pré-produção faz seu desjejum, trazido de casa ou adquirido de uma senhora que circula com garrafas térmicas e tupperwares. Dela compro um chocolate quente por R$ 1,50.

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Como o sorriso do Gato de Cheshire, a lua insiste em permanecer minguando sobre a cena mesmo com os primeiros raios de sol surgindo. A saudação com um bom dia vira trending topic naquele momento.  E a cordialidade típica da feira vai assumindo as rédeas nas relações entre colegas de trabalho: “E aí, amiga, não vai falar hoje comigo?” pergunta um. “Eu já não falei não, ô seu Zé Roela?!”, a vizinha responde.

Decido que é hora de partir, mas não sem antes comprar dois mamões papaia com o Everton (“é 4 por 10!”). Já passa das 6 horas e a feira de domingo está começando. Pode chegar, freguesia.

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Todas as fotos © Daniel Boa Nova Hypeness

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