Debate

As minas do Feminine Hi Fi querem (e vão) dominar o reggae com um Sound System poderoso pelas ruas

18 • 10 • 2016 às 07:37
Atualizada em 09 • 11 • 2017 às 21:05
Brunella Nunes
Brunella Nunes Jornalista por completo e absoluto amor a causa, Brunella vive em São Paulo, essa cidade louca que é palco de boa parte de suas histórias. Tem paixão e formação em artes, além de se interessar por ciência, tecnologia, sustentabilidade e outras cositas más. Escreve sobre inovação, cultura, viagem, comportamento e o que mais der na telha.

Ao longo da história da humanidade, o que não faltam são personagens masculinos marcantes nas mais variadas áreas. Na música, a cena se repete, como é o caso de Bob Marley, o nome mais forte no reggae ao redor do mundo. Para variar, pouco sabemos sobre as mulheres desta vertente, mas o Feminine Hi Fi, primeiro sound system brasileiro formado só por minas, quer virar esse jogo e está mostrando como fazer isso, na prática. Te convido para um mergulho nas ondas sonoras da música jamaicana sob a ótica feminina.

A Jamaica é considerada o berço do estilo musical que esbanja, entre tantos temas, letras sobre amor, união, paz e natureza. Em contrapartida, o país ainda tem fortes raízes Rastafáris, e mesmo que este pensamento não seja generalizado, acaba em grande parte colocando a mulher no típico papel de subordinada ao homem. Mesmo com os obstáculos de uma sociedade tradicionalmente machista e, por isso, antiquada, as mulheres sempre ocuparam um espaço pouco comentado dentro do reggae. A primeira que se teve conhecimento na história do reggae mundial é a produtora Sonia Pottinger, que entre 1960 e 1970 promoveu artistas como Big Youth, Marcia Griffths e Culture, responsável por seu maior sucesso, “Harder Than The Rest”.

A própria viúva de Bob, Rita Marley, não foi tão falada quanto ele mesmo acompanhando o marido em shows de 1974 até sua morte, em 1981, junto a Judy Mowatt e Marcia Griffiths, com quem formava o grupo I-Threes. Além disso, também é artista solo e tem uma carreira longínqua. Assim como ela, Judy também teve grandes feitos dentro do gênero musical, sendo a primeira mulher a ser indicada ao Grammy na categoria reggae music em 1985; dona do “Black Woman”, o primeiro LP totalmente produzido e cantado por uma mulher; e ainda lançou o primeiro hit de reggae feminino nas paradas norte americanas, “Love is Overdue”. Já Marcia é considerada a rainha do reggae, iniciando sua jornada musical em 1960 e chegando ao Brasil em 2012 para o festival Maranhão Roots Reggae – considerada a “Jamaica brasileira”.

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Por aqui, a dama do reggae é Célia Sampaio, maranhense que deu seus primeiros passos reggaeiros em 1984. Foi integrante do primeiro bloco afro do carnaval do Maranhão e da banda de reggae Guethos, fez backing vocal para artistas internacionais como Erick Donaldson e Judy Boucher, e depois lançou carreira solo que segue até hoje. Além dela, se destacam Andreia Dacal, que lançou o primeiro álbum em Dub Poetry no Brasil, Lei di Dai, Anamaria Ribeiro e Vilma Helena Ribeiro (Namastê), Izabella Rocha (ex-Natiruts), Tati Portella (Chimarruts), Dana David, Nina Roots e Dodô do Filosofia Reggae, Sistah Molly Rose (norte americana que está no Brasil desde 2000), Aline Duran, Soraia Drummond e Marina Peralta.

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Dentro do dancehall, uma vertente jamaicana mais politizada do reggae que surgiu em 1970, quem se destaca é a maravilhosa Sister Nancy (ou Muma Nancy), a primeira DJ mulher do gênero, que quebrou barreiras ao entrar nessa restrita cena musical e se apresentar no Reggae Sunsplash Festival, na Jamaica, e no mundo. Em sua música mais famosa, “Bam Bam”, canta versos que já se apontam como um manifesto feminista: “eu sou uma lady, não sou um homem. MC é minha ambição. Eu vim para animar a Jamaica”. De fato, animou o mundo e segue dominando a cena.

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Embora ela seja uma influência para o projeto paulistano Feminine Hi Fi, as meninas não querem centralizar numa personagem só, que já que somos minoria. Com a ideia de reforçar a presença e a força da mulher pela expressão feminina nos toca-discos, traz conscientização pela música e pela arte, participando tipicamente de eventos de rua, como manda o Sound System, com seleção feita 100% em discos de vinil, todos vindos das coleções pessoais das seletoras. Nas duas primeiras edições, reuniram mais de 15 mulheres em cada line-up, focando na importância da presença ômega massiva nas sessões.

Produzido por Dani I-Pisces, Lovesteady, Laylah e Rude Sistah, o projeto recebe trimestralmente convidadas de maneira alternada, buscando dar espaço não apenas para quem já atua nesse cenário há algum tempo, como também – e principalmente – para quem começa a dar seus primeiros passos. A ideia é unir, reunir, incentivar e fundir conhecimento, alegria e aprendizado.

Durante o Mês da Cultura Independente, elas ecoam: “Agoniza se a música te contagia, memoriza pra cantar junto no outro dia, não minimiza a força de uma menina. Feminina, primeira mão que acaricia. Não me diga, eu sei. Só eu sei por onde andei. O tanto de padrão quebrei, não entende, sai por onde entrei”. 

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Conversei com as produtoras para entender como está a cena atualmente e no que podemos melhorar para reforçar a presença feminina, dispensando aquela ideia errada de que “mulher faz menos” ou faz pior.

– Mesmo que fundado no fim da década de 1960, o reggae não é uma cultura atrelada ao feminino. Mulheres no reggae ainda é uma novidade pra muita gente. Ao que vocês atribuem esse fato?

Muito diz respeito à mulher na música de um modo geral. As primeiras escolas de música, os primeiros coros, as atividades quaisquer fora do ambiente de cuidar da casa e dos filhos a mulher começou tardiamente (salvo em sociedades matriarcais diversas, estamos generalizando do ponto de vista europeu/colonização europeia, ocidental). Fato é que os tempos são outros, embora ainda haja muito machismo no Reggae e no mundo. A mulherada está colocando cada vez mais sua cara ao sol, sem medo, indo buscar aquilo que elas gostam, são mais independentes hoje. Se ela gosta de uma coisa ela vai atrás, vai trabalhar, vai estudar, vai pesquisar e vai mostrar que sabe e entende.

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Foto: © Melissa Sirks

– É bem contraditório pegar um gênero musical que fale sobre desigualdade, amor e preconceito diante de um país estritamente machista, que é a Jamaica. E embora os negros ainda sofram com o racismo, fica claro que a mulher jamaicana sofre duplamente, por ser negra e por ser mulher. Como separar questões culturais e ainda assim destacar a importância feminina dentro da música em seu país de origem?

O reggae tem várias propostas, não só os “gritos” sociais. Há muitas músicas de amor, muitas músicas sobre baile, muitas releituras de músicas norte-americanas com diversos temas. Nós também temos que ter o cuidado em não generalizar a música Jamaicana. Uma parte fala de questão social, dentro dela uma parte fala de ancestralidade, outra parte fala a respeito de violência urbana, outra parte fala de religiosidade, outra parte fala de homossexualidade pejorativamente e preconceituosamente, outra parte fala de mulher pejorativamente e preconceituosamente. Isso acontece igual no samba aqui, no funk, no Hip Hop dos EUA, na música tradicional chinesa etc etc. A mulher negra sofre mais em qualquer situação, vertente, em qualquer área da vida, porque o mundo ainda é machista em sua maior parte e racista em sua maior parte. A luta pela equiparação deve acontecer nos vários campos. Nós que gostamos de reggae, focamos nossa energia para transformar “nossa casa” e assim contribuir para o todo.

– Qual é a importância social do reggae e, especialmente, para as mulheres negras?

O reggae, especialmente esse caminho dos sistemas de som, tem como mote desde sua existência alcançar a rua, tocar na rua. E aqui a maioria de nós admiradores e protagonistas somos periféricos, buscamos realizar os eventos onde vivemos, ou onde as pessoas como nós vive, na periferia. Assim, o papel social de realizar lazer descentralizado já atinge um mar de questões. Ao fazermos isso com o foco feminino e na periferia, que é onde as minas pretas estão majoritariamente, abrimos a oportunidade delas em primeiro lugar, gostarem, em seguida se sentirem parte e em seguida se “arriscarem” a participar e protagonizar também.

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Foto: © Miguel de Castro

– Vocês ainda encontram preconceito e machismo no meio do reggae e do soundsystem? Como lidam com isso?

Encontramos machismo como encontramos em todos os lugares, não é exclusivo na cena soundsystem. Mas, paralelamente encontramos parceiros, apoiadores e admiradores. Percebemos que temos mudado um pouco a cena. Lidamos com isso com a nossa resistência, e, sobretudo com união, coisa que nem sempre vemos entre os homens, infelizmente…

– Sabemos que a representatividade tem sido pauta constante em debates sociais. E a música muitas vezes representa nossos sentimentos e angústias. Assim, qual é a principal mensagem que o coletivo quer passar adiante?

Acreditamos que a principal mensagem que queremos passar é que toda mulher é capaz de se unir com outras e realizarem o que tem vontade, seja cantando, seja tocando seus discos, seja organizando seus eventos ou festas, o que for! Queremos dizer o quanto é importante nos unirmos para combater todo mal que durante anos nos foi causado e a importância da sonoridade e do empoderamento.

Foto: © Melissa Sirks
Foto: © Melissa Sirks

– O reggae pode ser uma música de protesto para as feministas?

Com certeza pode ser, como já foi para Sister Nancy e Ranking Ann. Por meio do nosso selo Feminine Tunes temos algumas dubplates escritas e cantadas por cantoras brasileiras onde a maioria das letras falam sobre feminismo e seu universo, são letras de luta e conscientização.

– Quem é a maior representante feminina no reggae hoje e, na opinião de vocês, a maior da história?

Jah9 hoje como artista atual, porém Sister Nancy, lá na Jamaica dos anos 1980 enfrentou o mundo machista em que vivia e mostrou que também sabia cantar! Depois dela muitas outras mulheres vieram. Como ela é viva ainda, sem dúvidas é uma grande referência no Reggae. Também vale a menção à Sonia Potinger por ter sido base para diversxs artistas no reggae, produtora e manager.

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Foto: © Miguel de Castro

– Sister Nancy é uma das grandes influências do grupo? Existe alguma brasileira como ela?

De certo ela é grande influência. Mas acho complicado centralizar. Já somos tão poucas… Buscamos valorizar uma gama maior de artistas. E uma das vantagens que temos é o nosso alcance vocal tão diverso. A Nancy tem um estilo de cantar, mais toaster (termo usado para rimas mais faladas do que cantadas), mas não tem grande qualidade melódica, enquanto têm outras tantas, a Susan Cadogan, por exemplo, que pra muitos é a primeira grande cantora de reggae da história, com o estilo mais singjay (união rítmica de canto e rima). Não dá pra comparar as duas. Aqui também temos grandes revelações de cantoras de linha mais toaster, como de linha mais singjay, como aquelas que sabem misturar bem as duas linguagens.

– A ideia do grupo é unir e empoderar mulheres através da música. Tem dado certo? Qual é o retorno do trabalho que vocês têm feito?

Temos atingido nosso objetivo. Desde o surgimento da Feminine Hi-Fi, percebemos que mais mulheres têm aparecido na cena, se interessado por desenvolver seus próprios projetos. Nos eventos, as mulheres estão participando um pouco mais dos line ups, ainda somos minoria mas já teve um crescimento significante. Novas festas e coletivos apenas de mulheres têm se formado, mais soundmans estão se preocupando em colocar a presença feminina em seus line ups, novas parcerias entre nós, mais minas estão metendo as caras para cantar e colecionar, pois se sentem seguras por outras mulheres as apoiarem. Produtores chamando novas vozes para lançar EP e gravar algumas faixas. Tudo está fluindo, mas ainda achamos pouco, queremos mais e merecemos muito mais!

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Foto: © Melissa Sirks

– Qual foi a melhor experiência que o coletivo já teve desde a sua fundação?

A cada edição temos a melhor experiência, pois aparecem mais mulheres no mic, na festa, com mais atitude, mais liberdade e é lindo ver todas sorrindo e super felizes por terem um espaço e recurso para viver e fazer o que gostam. Todas as vezes que levamos a Feminine Hi Fi para as ruas é uma experiência única. Todas as vezes foram maravilhosas.

– Quais artistas vocês indicam pra quem vai começar a conhecer o som das minas no reggae?

Ranking Ann, Sister Nancy, Lady G, Jennifer Lara, Tanya Stephens, Hortense Ellis, Judy Mowatt, Phyllis Dillon, Marcia Griffiths, Susan Cadogan, Althea e Donna, Sistah Aisha, Nish Wadada, Jah9, Soom T, Aisha, Christine Miller… São MUITAS boas referências, e não param nessa lista apenas. No Brasil, nossa produtora e voz Laylah, Marietta, Sistah Chilli, Marina Peralta, Lei Di Dai, Mis Ivy. Nossa, são vários nomes importantes também. E fiquem de olho em diversos nomes da nova escola que ainda não têm grande quantidade de produções, mas já possuem singles de qualidade e alcance destacável, como I-Sarana, Nina Girassóis e Agatha Saan.

Foto: © Melissa Sirks
Foto: © Melissa Sirks

Foto do topo da página: © Marco Estrella

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