Arte

Como foi a terceira edição do Mundial Poético, festival internacional de poesia, no Uruguai

27 • 11 • 2017 às 08:48
Atualizada em 16 • 04 • 2022 às 14:43
Vitor Paiva
Vitor Paiva   Redator Vitor Paiva é jornalista, escritor, pesquisador e músico. Nascido no Rio de Janeiro, é Doutor em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio. Trabalhou em diversas publicações desde o início dos anos 2000, escrevendo especialmente sobre música, literatura, contracultura e história da arte.

Para o segundo menor país da América do Sul, maior somente que o Suriname, tendo a terceira menor população do continente com cerca de 3,4 milhões de habitantes, nos últimos anos o Uruguai vem fazendo um saudável e importante barulho ao sul do continente. Em um momento de largos passos sociais, políticos, culturais e humanos dados para trás, em especial pelo Brasil, esse pequeno país à beira do Rio da Prata segue como um gigante empurrando pautas tão fundamentais quanto atrasadas, como a legalização da maconha e do aborto, o casamento gay e a energia limpa.

O que poucos sabem, porém, é que o Uruguai é também uma referência e um verdadeiro ponto de encontro internacional em um assunto surpreendente aos desavisados: a poesia. A terra de Eduardo Galeano e Lautreamont recentemente foi pela terceira vez sede e cenário do Mundial Poético de Montevideo, um festival internacional reunindo poetas de todo o mundo por uma semana na capital do país.

Belíssimo cartaz da edição de 2017 do Mundial Poético

Belíssimo cartaz da edição de 2017 do Mundial Poético © Divulgação

Em 2017, finalmente pude aceitar o convite que o querido amigo e poeta uruguaio Martín Barea Mattos – criador, organizador, apresentador do festival – já havia me feito na edição anterior do Mundial, e fui a Montevideo para passar a última semana do mês de outubro. Entre poetas do mundo inteiro, fiz parte de um grupo de poetas brasileiros que se apresentou falando poemas todos os dias nos mais diversos e incríveis palcos, teatros, bares e locais da capital do Uruguai.

Martín Barea Mattos, organizador do Mundial © foto: Paola Scagliotti

Martín Barea Mattos, organizador do Mundial © foto: Paola Scagliotti

Formava comigo a comitiva brasileira do Mundial os poetas Pedro Lago, Pedro Rocha, Luiz Felipe Leprevost e a poeta Amora Pêra. Toda a felicidade de viajar como escritor, em especial como poeta, a outro país teria como contraste, no entanto, dois pequenos poréns, que fariam pessoalmente da minha estadia uma pequena cruzada pessoal.

A comitiva brasileira no festival, com Martín (da esquerda pra direita: Eu, Leprevost, Amora, Martín, Pedro Rocha e Pedro Lago) © Foto: Nilson de Souza 

A comitiva brasileira no festival, com Martín (da esquerda pra direita: Eu, Leprevost, Amora, Martín, Pedro Rocha e Pedro Lago) © Foto: Nilson de Souza 

Essa cruzada começou antes mesmo de pousarmos em Montevideo. A viagem que deveria durar poucas horas acabou levando quase um dia inteiro, pois o avião não pôde decolar da conexão em São Paulo por conta de uma pane no sistema de ar da aeronave – tivemos que dormir em um hotel de poucas estrelas em Guarulhos, e somente chegar à cidade pela manhã do dia seguinte. Além da exaustão que naturalmente nos tomou, o jantar que recebemos na madrugada, no tal hotel, não se assentou amigavelmente em meu estômago, e algo similar a uma intoxicação alimentar, uma virosa ou outros desses males que nos confinam ao mal estar e ao banheiro tomou conta de mim, e me acompanharia pelos sete dias em que estaria em solo uruguaio.

A bela Sala Verdi, em Montevideo, onde aconteceu a abertura do Mundial © foto: divulgação

A bela Sala Verdi, em Montevideo, onde aconteceu a abertura do Mundial © foto: divulgação

O sonho de acompanhar o Mundial Poético com litros de cerveja e quilos das melhores carnes foi por água abaixo no instante em que pousei na cidade e entendi que estava doente. A experiência, portanto, passou a estar focada no imenso prazer de descobrir o trabalho de poetas de países como Chile, Argentina, Holanda, Peru, Espanha, França, Colombia, Estados Unidos, México, Uruguai e muito mais – o que tornou tudo ainda mais singular e especial, apesar das cólicas e do mal estar que eventualmente me tomavam. Não podia, porém, fraquejar, e mesmo me sentindo mal, fui começar a participação no Mundial.

Pedro Lago com seu crachá de poeta 

Pedro Lago com seu crachá de poeta 

 Logo na abertura, a maioria dos poetas envolvidos com o festival – eram, no total, mais de 30 artistas – subiu ao belíssimo e antigo palco da Sala Verdi, um edifício em estilo neoclássico inaugurado em 1894, por onde diversas orquestras e espetáculos nacionais e internacionais se apresentaram ao longos dos últimos 123 anos. Um teatro clássico, com o peso e a aura que tais locais possuem em qualquer lugar do mundo, foi, portanto, nosso palco de entrada no festival: os brasileiros abriram o festival, com os dois Pedros e Amora, que já haviam participado das outras edições do Mundial, lendo os primeiros poemas – eu e Leprevost, estreantes, nos apresentamos orgulhosamente na segunda parte do evento de abertura. Todos os poetas convidados ao Mundial subiram ao palco para falar alguns poemas, e assim foram feitas as apresentações formais entre os participantes.

Leprevost e eu © foto: Nilson de Souza 

Leprevost e eu © foto: Nilson de Souza 

As noites terminavam quase que invariavelmente no Santa Catalina, um maravilhoso e típico boteco que poderia ter saído das ruas de Botafogo, no Rio de Janeiro, ou do centro de São Paulo, onde o querido garçom Marques nos presenteava com sua simpatia e as mais geladas ampolas da cerveja Patrícia ou garrafas de vinho Don Pascual. Eu confesso que tentei, mas minha virose não me permitiu maiores aventuras boêmias desde o primeiro dia: estar, no entanto, rodeado de poetas do mundo todo, devidamente embriagados, já era alegria suficiente.

Martin e os poetas Oscar Saavedra, Ángela Segovia e John Martinez Gonzales

Martin e os poetas Oscar Saavedra, Ángela Segovia e John Martinez Gonzales

Celeste Dieguez e María Eugenia López © foto: Nilson de Souza

Celeste Dieguez e María Eugenia López © foto: Nilson de Souza

Fazer parte de um grupo de poetas brasileiros em um festival que, apesar de internacional, era formado em sua maioria por artistas que trabalham em espanhol revelou-se também uma experiência singular, que diz um tanto sobre a relação cultural entre o Brasil e nossos vizinhos. Por um lado, em grande parte ignoramos por aqui a produção literária e musical de países obviamente ricos e cheios de grandes artistas, como a Argentina, o Chile, a Venezuela e o próprio Uruguai – e, assim, perdemos um interessante, importante e renovador intercâmbio com artistas tão próximos de nossa realidade.

John Martinez Gonzalez e Ángela Segóvia © fotos: Nilson de Souza

John Martinez Gonzalez e Ángela Segóvia © fotos: Nilson de Souza

Por outro lado, a grandeza geográfica do Brasil e a imensa produção cultural brasileira – consumida intensamente por nossos irmãos da América do Sul – torna nosso país ao mesmo tempo uma força incontornável (excluir o Brasil, afinal, de qualquer jogo literário simplesmente por falarmos outra língua seria tentar ignorar um gigante) e uma espécie de influência invasiva, quase imperialista, no continente. De certa forma, o Brasil é como os EUA para o resto da América do Sul: um país grandioso, dono de uma das maiores produções artísticas do planeta e, ao mesmo tempo, culturalmente impositivo e autocentrado.

Martín preparando mais um roteiro para uma apresentação no Mundial © foto: Nilson de Souza

Martín preparando mais um roteiro para uma apresentação no Mundial © foto: Nilson de Souza

 Se, como em qualquer outro contexto, o inglês também funciona dentro da poesia falada como uma espécie de esperanto, ou o mais próximo de uma língua universal – nem todos falam com fluência, mas para poetas americanos e holandeses, por exemplo, a língua abria as portas da compreensão – nós, enquanto brasileiros, estávamos ao mesmo tempo tão próximos do castelhano e distantes por completo, sendo o único grupo a falar poemas em português. Rapidamente ficou claro que a compreensão era absolutamente viável, e que a troca entre os trabalhos era fluida, como se todos falássemos uma mesma língua – e falávamos.

O grande poeta holandês Jaap Blonk © foto: Nilson de Souza

O grande poeta e performer holandês Jaap Blonk © foto: Nilson de Souza

A agenda do festival era intensa, com apresentações diárias em teatros e espaços variados de Montevideo, como o Centro Cultural de España, El Peregrino, o Museu Zorrila e o simpático bar Fun Fun, que nos serviu uma deliciosa e inebriante cachaça de uva. Participar de um festival de poesia em outro país nos permitiu conhecer diversos centros culturais, ainda que o mal-estar e a programação de certa me impedisse de visitar locais turísticos. Cumprir tal agenda estando doente – e, confesso, insistindo em provar diversas vezes a tal cachaça de uva – acabou incluindo na programação a visita a um local um tanto exótico para um turista: um hospital público.

O simpático bar Fun Fun © foto: Leprevost

O simpático bar Fun Fun © foto: Leprevost

 Depois de quase quatro dias de virose, ainda que minha condição não tenha piorado, entendi que era hora de parar de seguir os conselhos traduzidos ao portunhol dos mais diversos farmacêuticos de Montevideo e enfim receber o diagnóstico apropriado de um médico. Passadas algumas boas horas em uma sala de espera fui atendido por uma jovem médica, que vaticinou: sim, é uma virose. Segundo a doutora, o remédio que estava tomando, receitado displicentemente por mim mesmo em parceria com um dos farmacêuticos da cidade, no entanto, estava piorando meu quadro, e não havia muito o que fazer além de me hidratar como um maníaco e esperar – além, é claro, de abandonar o tal remédio.

Pedro Rocha, Claudio Marcelo Martinez e eu, na abertura do Festival © foto: Nilson de Souza

Pedro Rocha, Claudio Marcelo Martinez e eu, na abertura do Festival © foto: Nilson de Souza

Minha sorte foi que o simpático hotel Splendido, onde a maioria de nós estava hospedada, oferecia uma aconchegante cozinha, e que tinha minha amada amiga Amora para me ajudar, e preparar a canja de galinha que me salvou. Comecei a melhorar no dia seguinte, mas o final de semana já chegava, e com ele o Mundial Poético de Montevideo de 2017 aproximava-se de seu fim.

Amora Pêra © foto: Paola Scagliotti

Joseph Makkos © foto: Paola Scagliotti

Pedro Lago © foto: Paola Scagliotti

Ao longo da semana, durante as apresentações, os poemas apresentados variavam completamente, entre estéticas reflexões existenciais e imagéticas – com pouquíssimos poemas de amor – , poemas sonoros e experimentais, e uma vasta presença de poemas políticos, relacionando-se em crítica intensa contra o apocalíptico cenário atual nas Américas e no mundo. Nomes como Jaap Blonk, da Holanda, Angela Segovia, da Espanha, Joseph Makkos, Bill Lavender e Mark Statman, dos Estados Unidos, Oscar Saavedra, do Chile, Celeste Dieguez, Maria Eugenia Lopez e Claudio Martinez, da Argentina, John Martinez Gonzalez, do Perú, entre muitos outros, formaram, junto de nós, brasileiros, o elenco que diariamente se apresentou gratuitamente nesses tantos palcos uruguaios, para um público ávido, atento, interessado e interessante.

Claudio Martinez se apresentando ao meu lado no bar Fun Fun

Claudio Martinez se apresentando ao meu lado no bar Fun Fun

A condução de todos os espetáculos foi feita pelo talento e o afeto de Martin Barea, que reuniu, como o perfeito cicerone e amigo que é, essas fatias diversas do mundo para, juntas, falarem poemas e se encontrarem poeticamente em sua cidade. Antes de tudo, porém, Martin é um poeta, que, por esforço, capacidade, talento e necessidade pessoal, conseguiu pela terceira vez, em 2017. reunir nomes da poesia do mundo todo para realizarem um incrível festival internacional, como um desses agitadores de que toda cidade carece e merece.

Leprevost fazendo anotações antes de se apresentar © foto: Nilson de Souza

Leprevost fazendo anotações antes de se apresentar © foto: Nilson de Souza

No último dia, boa parte do grupo apresentou-se no espetacular Espacio de Arte Contemporáneo, um antigo presídio, o mais antigo do Uruguai, que parte de suas instalações reformada para receber um museu, e no qual, no antigo pátio onde os presos tomavam sol, um palco foi instalado para as apresentações de encerramento do Mundial. O último dia de festival foi aberto com show inesquecível de Martin, cantando canções acompanhado ao violão, e foi a primeira vez que todos nós, brasileiros, nos apresentamos todos juntos.

O incrível Espacio de Arte Contemporáneo, antigo presídio da cidade, cenário do último dia de festival © foto: Amora Pêra

O incrível Espacio de Arte Contemporáneo, antigo presídio da cidade, cenário do último dia de festival © Amora Pêra

Entre poemas falados e algumas canções, nos despedimos do festival, com uma ligeira passada pela festa de encerramento. Na manhã seguinte, nos despedirmos também de Montevideo, uma cidade especialmente livre, e de tal forma elegante em sua liberdade conquistada, que é como se ilustrasse um estado natural e nada extraordinário diante de um jovem fumando maconha da mesma forma que se fuma, aqui no Brasil, um cigarro de tabaco – sem causar mal a ninguém.

Apresentação coletiva dos brasileiros, no encerramento do festival © foto: Nilson de Souza

Apresentação coletiva dos brasileiros, no encerramento do festival © foto: Nilson de Souza

Assim também foi com os poemas, recebidos com a naturalidade e, ao mesmo tempo, a forte singularidade libertária que a arte deve possuir, em uma pequena cidade repleta de cultura e espaços livres para a arte, que visitei pela primeira vez, e que me despedi certo de que volto em breve – e sem cólicas nem viroses.

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