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Quando me deparei com o novo desafio que o Hypeness me propôs, adivinhem qual foi minha reação? “Preconceituosa, eu?” Só faltou dizer: “Imagina, tenho até amigos que são”.
Ainda cega, chamei o diretor de conteúdo deste site que vocês leem neste instante no Whatsapp para protestar. “Então, sabe o que é? Venho desconstruindo meus preconceitos há um tempo. Sou bem ligada nas questões sociais. Será que sou a pessoa mais indicada para esse texto?”. (Que vergonha de contar isso agora. Sério).
Daí que ele me apontou, com muita tranquilidade: “Fico sempre me perguntando… De onde será que a gente acha tem essa autoridade moral toda para falar isso?”. Foi o primeiro PÁ, bem na minha cara. O primeiro de muitos que viriam.
Para aceitar o desafio, eu tive de chegar à conclusão que não tenho autoridade porque mesmo sendo feminista e atenta às outras questões sociais, ainda sou branca, classe média e heterossexual. Tenho privilégios que me abrem portas e me poupam de sofrimentos. É desconfortável se reconhecer como opressor? Muito. Mas o que é sentir um mal estar perto da dor de ser alvo de preconceitos?
A proposta do desafio também vinha acompanhada de uma pesquisa da Skol Diálogos que dizia que apenas 17% dos brasileiros se declaram preconceituosos, mas 72% admitem já terem feito comentários desse tipo. Olha meu perfil aí, gente.
A semana do desafio já começou para mostrar como esse números funcionam na prática.
O que eu não podia imaginar é como esses dias viriam recheados de lições, todas ligadas a assuntos que bombaram. Na semana do desafio, tivemos a vinda da filósofa Judith Butler ao Brasil e o jornalista William Waack no auge do racismo.
O primeiro dia veio logo depois primeiro dia de prova do Enem e eu não sei como contar isso sem parecer ridícula. Por muitos anos, me diverti com a galera que chega atrasada para a prova. Devo até ter compartilhado no passado uma foto de uma dessas pessoas chorando no portão. E quem ri nunca está sozinho nessa. A hashtag #ShowDosAtrasados ocupava o primeiro lugar do Twitter naquela segunda-feira. Assim mesmo, sem constrangimento nenhum. As pessoas chegavam ao trabalho e se deliciavam com a dor alheia. Bem, eu já fui uma dessas. Que pessoazinha má a senhorita foi por anos, pensei comigo mesma.
Talvez fosse por me achar “superior por nunca ter me atrasado para o Enem ou vestibulares”, sem nunca me dar conta que o fato de meu pai me deixar de carro na porta do local de prova pode ter tudo a ver com isso. E sinceramente, qual é a graça de rir de quem falhou ao tentar ingressar no Ensino Superior no Brasil? Qual é a graça de ver alguém muito triste e constrangido? É sádico e bobo.
No meio da tarde, fui encontrar um amigo e revelei qual era o primeiro preconceito a ser desmontado e ele contou que passava pelo mesmo processo há pelo menos dois anos. “Não é aquele tipo de coisa que eu vou para as ruas xingar quem está rindo, mas não postaria mais fotos dessas pessoas. Nossa, não sei porque a gente achava graça disso”. No fundo, a gente sabe, sim. É fácil colocar o outro pra baixo quando estamos em uma posição diferente da dele.
Acordo com uma mensagem de uma amiga num grupo do Zap. “E aí, galera, quem vai colar no Sesc Pompeia (São Paulo) para apoiar a Judith Butler?”. Sabia que a presença da filósofa americana que estuda gênero e sexualidade causaria alvoroço. Um grupo conservador já tinha criado a petição contra a vinda dela ao Brasil. Para eles, a filósofa é o grande nome da “ideologia de gênero” e “incentiva” as pessoas a vivenciarem a sexualidade de diversas maneiras.
O trabalho de Butler não tem a ver com isso. Butler não se opõem ao direito de “meninos serem meninos” e “meninas serem meninas”, mas questiona se gênero e sexualidade não estão além da fisiologia e do que foi imposto. Se com o Enem pensei que preconceito por de vir muito da falta da empatia, com a Judith me lembrei que ele pode vir da falta de informação.
Passei a manhã assistindo aos vídeos na internet em que pessoas chamavam Judith de assassina e queimavam uma boneca com a cara dela. Fiquei tentando entender aquilo e tentando achar uma conexão com o evento que acontecia dentro da instituição, em que Judith nem tocou no assunto gênero ou sexualidade. A filósofa veio ao Brasil para falar de democracia e dos conflitos entre Israel e Palestina. Preconceitos criam ondas de medo malucas em que de repente tem uma galera agredindo outra sem saber direito por quê. A semana não seria fácil. Ali já dava para sentir.
No terceiro dia de desafio lidei com o preconceito que mais tenho medo de abordar, falar besteira e irritar os outros: o racial. Todos os dias aprendo um pouco sobre como demonstrar apoio sem roubar lugar de fala. É uma parada difícil de aprender e que exige atenção constante.
Achei que durante o desafio, passaria por algo que me remetesse a esse aprendizado, mas o tema que me tomou na semana estava umas casinhas atrás da desconstrução. Pior, não havia sinal de desconstrução. Waack, vamos conversar uns minutinhos?
Era final de tarde quando vi minha timeline ser inundada por um vídeo em que o jornalista William Waack dizia, em frente à Casa Branca, que o barulho que invadia os bastidores de sua transmissão ao vivo era “coisa de preto”.
Ao ouvir isso, fiquei primeiro em choque. É 2017 etem gente que ainda diz isso? É óbvio que isso jamais foi ok em algum momento da história, mas a frase me transportou diretamente para o começo dos anos 90, quando ouvia isso em almoços de família sem que qualquer pessoa da mesa parecesse constrangida.
Fui ensinada quando era pequena a achar graça dessas palavras horríveis que o Waack disse rindo, mas também aprendi a ver isso com algo extremamente grave, violento e brutal quando adulta. Fiquei mal ao me reconhecer no papel de Waack em algum momento da minha vida, fiquei mal em ver que ele ocupa (talvez agora não mais) um palanque em que pode falar influenciar milhões de pessoas, fiquei mal com posts de Facebook em que colegas diziam que “hoje em dia não se pode mais brincar” ou “essa galera do politicamente correto é muito chata”.
Sem dúvida, esse foi o dia mais pesado do desafio, fiquei rolando na cama e com a certeza de que ter insônia não ia mudar nada, só me deixar mais cansada no dia seguinte. Que deprê… que deprê…
O caso Waack repercutiu na minha família, claro. Meu pai, um taxista de 66 anos, me mandou uma mensagem dizendo que não estava acreditando no que Waack disse. Ele me contou que o caso também foi assunto entre os passageiros naquele dia. O comentário que meu pai mais ouviu era do tipo “como um jornalista de tanto prestígio poderia ter vacilado desse jeito”. Vacilado? Curioso, não é? Ocupar um lugar de destaque pode fazer com que as pessoas até duvidem de quem você realmente é. Está tudo liberado.
Como eu sabia que a semana do desafio não estava para brincadeira, era hora de enfrentar outras questões. À noite, fui ao show da Linn da Quebrada, negra, trans e da periferia.
Não conhece? Ouça aqui que é só porrada.
Já havia ido a um show dela no começo do ano e foi interessante observar que é possível se aproximar aos poucos de um tema que pode chocar no primeiro impacto. O show da Linn é um grito contra a violência diárias que travestis e mulheres trans sofrem.
No primeiro show em que a vi, lembro de me sentir atacada quando ela cantou “Mulher”: “Ela tem cara de mulher/Ela tem corpo de mulher/Ela tem jeito/Tem bunda/Tem peito/E o pau de mulher!”. “Como assim pau de mulher? Será que isso não oprime as mulheres ainda mais?”, pensei, meio que culpando a artista.
Meses depois, no segundo show, cantei junto, vibrei, me emocionei. Havia entendido a mensagem. É que, por vezes, a gente precisa mesmo é de tempo para entender certas questões.
As pessoas trans são as que estão mais vulneráveis na sociedade e por quê? Por que estão questionando o que é ser uma mulher. É preciso ter um pênis?
Saí muito mais empolgada do show dessa vez, feliz que tinha entendido umas coisinhas sobre o que Linn queria dizer. Obrigada, miga.
A sexta-feira foi um bom complemento da brisa com Linn da Quebrada. Finalmente consegui ver a exposição “História da Sexualidade” do Masp. São mais de 300 obras que se dividem por temas: “Corpos nus”, “Religiosidades”, “Performatividades de gênero”, “Jogos sexuais”, “Mercados sexuais”.
A obra de Juca Martins me fisgou. Em 1980, o repórter fotográfico obteve autorização da polícia de São Paulo para acompanhar batidas no centro da cidade. O objetivo da operação era reprimir assaltantes e traficantes, mas a maioria dos detidos era (obviamente) prostitutas e travestis [que você logo acima].
As imagens entristecem, mas não são as únicas da exposição. Boa parte das obras que retratavam trans está ligada ao sofrimento. O mínimo que podemos fazer é seguir os conselhos de Linn e bater “palmas para as travestis que lutam para existir”.
O desafio era para ter terminado na sexta, mas não podia encerrar sem a manifestação contra a PEC 181 que tira o direito de abortar de mulheres que ficaram grávidas após serem estupradas. O ato levou cerca de 10 mil mulheres para a Avenida Paulista. Acho que foi um bom momento para fechar o desafio da semana.
Aquele encontro de mulheres pedindo por um direito básico diz muito sobre o grau em que estamos do debate. Falta empatia, falta informação, falta vontade de desconstruir o que há dentro e que faz com que a gente não aceite o outro, suas vontades e necessidades.
Foi uma semana rica de material para trabalhar, mas também muito difícil. Dei “sorte” com tudo que aconteceu e dei muito, muito azar. Como foi doloroso me reencontrar com aspectos de uma Mariane que luto todos os dias para deixar no passado para sempre.
Termino esse texto sem saber se ofendi alguém ou se ficou parecendo que eu quero biscoito por ter avançado umas três casinhas em algumas questões. Mas, ó, a gente está em reconstrução o tempo todo, a vida toda. Longe de mim me encarar como alguém que está “pronta”.
Eu, mulher feminista e “desconstruidona”, ainda vejo preconceitos que preciso trabalhar. Tenho preconceitos que muitos acham até “bonito” ter ou classificam de preconceitos “fáceis”. Por exemplo: não consigo entender muito as pessoas viciadas em academia nem que amam, veneram e gastam milhares de reais em carros. Também tenho preconceito com certas identificações políticas, por exemplo. Algumas… AHHHHH! Dão calafrios.
Algumas coisas é complicado olhar para o outro e dizer: “Ok, faz parte dele. É uma opção que ele fez”. Mas, preconceito é preconceito. Aprendi com o desafio que precisamos trabalhar todas as questões. E se reencontrar com o passado é uma ótima forma de fazer isso.
Tenho consciência de que falta muito, mas alivia pensar que não há uma linha de chegada. Tirar as amarras do preconceito é um processo que vai durar a vida inteira. O processo é sempre doloroso, mas a certeza é de que a gente sai melhor do que entrou. Pode apostar.
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