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Foi depois de uma gravidez que Ligia Moreiras, 39 anos, renasceu não só como mãe, mas como pessoa. Bióloga, mestre em ciências e doutora em saúde pública com ênfase na saúde da mulher, ela acompanhava de perto alguns dos vários dilemas femininos durante a profissão. Mas, ao se preparar para dar a luz, via o quanto a informação sobre maternidade que circulava era limitada e limitante. Foi unindo esforços para propagar conhecimentos fora da caixinha que ela fundou a Cientista que Virou Mãe, a primeira plataforma de conteúdo no Brasil feita exclusivamente por mulheres mães.
Tudo começou como um despretensioso blog, onde Ligia ainda com Clara na barriga compartilhava seus anseios, dúvidas e dilemas ao redor da maternidade. Questionava todos os conceitos expostos em torno do assunto, desde a necessidade da amamentação até questões referentes ao parto e à educação. Através deste canal conheceu sua sócia, Louisiana Feuser, que na época estava grávida e em busca da mesma coisa: informações geradas por uma mídia não hegemônica.
A amizade perdurou, gerando frutos. Em meados de 2015 o blog se transformou numa ferramenta de trabalho e uma rede de empoderamento para tantas outras mulheres mães. Por meio de financiamento coletivo, abre portas para a divulgação e realização de projetos independentes na área de conteúdo relacionado ao universo feminino e a maternidade. As contribuições são livres, ou seja, cada pessoa investe o quanto pode. A iniciativa ganhou em primeiro lugar o prêmio da Social Good Brasil Lab 2015, voltado para negócios de impacto social.
Morando em Florianópolis há 13 anos, foi lá que concluiu seus doutorados e que se pré-candidatou a deputada estadual pelo PSOL. Batemos um papo com ela para entender seu histórico, seus anseios e suas lutas.
A ciência é um clube do bolinha. Apesar de ter mulheres, por muito tempo, pra variar, elas não eram protagonistas na profissão. Esse machismo te desanimou a seguir em frente na carreira?
Não me desanimou. Poderia ter, porque enfrentei várias vezes sua expressão na ciência.
O meu desejo adolescente era trabalhar com ciência espacial e eu queria fazer ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica), e não pude fazer porque não abriam inscrições para mulheres.
Depois, passei em primeiro lugar no vestibular de ciências biológicas da Unesp (Universidade Estadual Paulista) e me lembro que fui contar isso para um professor de física que eu tive, ele comentou: “pra você ver como não se faz mais vestibular como antigamente, pra uma mulher passar em primeiro lugar”. Essa é mais uma expressão do machismo não só na ciência, mas na área acadêmica como um todo.
Tive que conviver com várias coisas, piadinhas, que não podemos mais aceitar. Temos que problematizar sim. Muitas colegas minhas sucumbiram, não aguentaram a pressão de serem mulheres dentro de uma área como a ciência brasileira. Mas isso nunca foi um impeditivo pra mim porque tenho uma personalidade enfrentadora. O que acho injusto, eu aponto. Quando passei por situações assim sempre expus. E isso nos dá força para continuar.
Você é mãe há 8 anos. Como você avalia a evolução da sociedade nesse período em relação aos temas não só maternos, mas do universo feminino como um todo?
Toda a minha transformação pessoal acompanha um pouco mais de oito anos por conta da gestação. Eu fui despertada para essa questão da vida das mulheres quando engravidei e fui buscar informação sobre a maternidade. Na época, eu não tinha esse recorte de gênero. Sabia que era extremamente importante a luta pela igualdade, mas não me reconhecia como feminista. Não tinha acesso a esse debate.
O que eu notei foi uma completa transformação das pautas relacionadas a vida das mulheres, por conta dos movimentos feministas aqui e no mundo. O fato de ter ido para as ruas, sucessivas vezes, de 2012 pra cá, nos trouxe um avanço muito grande.
O fato de estar conseguindo pautar, pelas redes sociais, coisas das quais não conseguíamos falar tanto, nos ajudou muito. As próprias redes sociais catalisaram essa transformação, permitiram que mulheres que antes não poderiam se conectar formassem redes, que serviram para mobilização em massa das mulheres. Conseguimos trazer assuntos que estavam definitivamente negligenciados aqui, não só na política, mas nos nossos convívios sociais. Um caso desses é o da violência obstétrica, que sequer tinha nome anos atrás.
Às vezes a gente tem a impressão de que as coisas estão piorando, porque se fala muito em violência contra mulher e meninas. Mas na realidade não, estamos tendo grandes avanços. Hoje a gente pode falar e a nossa voz ecoa, chega a outras mulheres. Vejo que o movimento feminista vem se beneficiando muito dessas redes, sejam reais ou virtuais.
Tem como ser mãe e não ser feminista, ainda mais sendo mãe de uma mulher?
Ter, tem, né… Infelizmente. Existe um porção de mulheres mães que fazem questão de criar seus filhos e filhas com base em sexismo e papéis sociais. Mas felizmente o que temos visto é que é cada vez maior o número de mães que optam por dar uma educação livre de opressões. Muitas delas nem se denominam feministas mas praticam uma educação fora do padrão, não baseada em regras de gênero.
O que a gente tem trabalhado para promover é justamente o acesso a essa informação pelas mulheres mães para que vejam que só há benefícios numa criação feminista. E não inclui só as meninas, mas também os meninos. Sempre falamos que o machismo não faz só mulheres e meninas como vítimas, são apenas preferenciais, mas prejudica também a vida dos meninos, criados para ser “machões”. Eu sou uma mãe feminista e vejo que quando outras mães têm acesso a uma informação boa, clara, explícita, também optam por transformar sua prática de maternidade, numa luta contra o machismo na educação das crianças.
Sob a sua perspectiva, quais são os principais dilemas das mães modernas?
Eu me reconheço como feminista interseccional. Não posso falar de todas as mães ou restringir seus problemas. Os dilemas variam de acordo com grupos. Para mim, o principal dilema é lidar com a sobrecarga, porque a gente trabalha e continua acumulando a função de cuidado com as crianças. Então cuidar das nossas carreiras, das nossas crianças e das nossas vidas enquanto mulheres é extremamente extenuante.
Para as mães negras, a questão envolve outras coisas, como ter de lidar com o genocídio de seus filhos. Lutar contra o racismo das quais seus filhos são vítimas.
Há também as mães que lidam com geração de renda, com a administração do lar e a falta de condições adequadas para as crianças mais pobres, que ainda são um grande número no Brasil.
Muito tem se falado sobre o papel do pai. Acha que é fundamental? Como é essa questão com a sua filha e com o seu próprio pai?
Acho que é extremamente fundamental. Talvez uma das principais discussões seja essa da paternidade. Temos um número recorde no mundo de crianças sem o nome do pai na certidão de nascimento. Isso sem falar das que têm, mas são pais nada presentes, aumentando a questão anterior, em relação aos dilemas. A frase, que é uma brincadeira, “cadê a mãe dessa criança?”, apresenta um conceito popular, coletivo. A própria sociedade vê as mães como responsáveis pelas crianças e não os pais.
O movimento materno e feminista tem ajudado a promover esse debate, porque a gente precisa trabalhar para que os homens reconheçam a paternidade e seu papel. A própria licença paternidade é ridícula. Ela já expõe a quem cabe o ônus do cuidado com as crianças. No caso da minha filha, tenho a guarda compartilhada com o pai dela, com quem tomo decisões em conjunto, não ficando apenas no meu critério. O custo financeiro e o tempo é dividido em 50%. Se o pai é uma pessoa que tem condições, especialmente emocionais, de maturidade, é isso que eu recomendo que aconteça, justamente pra gente transformar esse caráter cultural.
Estar envolvida em um negócio social te abriu os olhos para a política? Como foi esse engajamento?
O negócio social começou em 2015. Quando fiz meu doutorado em saúde pública e coletiva, em 2011, meus olhos foram escancarados para a política, para a importância da participação política das mulheres. A importância de ocupar um lugar político está bem estabelecida pra mim e meu engajamento veio daí. Isso tem muito a ver com a minha linha de pesquisa porque nesses últimos anos do doutorado eu estudei uma área de ciências sociais e saúde.
Me aproximar da violência obstétrica que as brasileiras vivem me mostrou a total ausência de problematização nesse sentido. Mostrou também que o ativismo social tem uma pauta política indispensável.
Quando vamos às ruas exigir que os corpos das mulheres sejam de fato do controle delas, que sejam respeitados e que somente nós mesmas possamos legislar sobre eles, isso mexe diretamente com política pública. Não é do meu perfil ser uma pesquisadora dessa área sem se engajar com política e isso está muito vinculado ao meu trabalho como pesquisadora em saúde pública.
O que me motivou nessa aventura muita corajosa de ser pré-candidata foi eu ter acesso a uma informação que me mostra como a gente, como mulheres, vem tendo vidas tão difíceis, e as crianças vêm sendo desrespeitadas. Eu tenho acesso a isso e não há como ignorar. Não há como eu ser isenta. Por dois anos as pessoas me abordaram para que eu assumisse algum cargo político e eu sempre disse que meu lugar não era lá. Que eu não via nessa posição.
Mas aí tivemos o choque que foi a execução da Marielle Franco e como ativista fiquei muito impactada, muito chocada, com muito medo do que poderia acontecer com outras de nós, como já acontece. Aí percebi o quão poucas são as mulheres na representação política. Por serem poucas, estão ainda mais numa situação de vulnerabilidade. Se nós, que temos condições de se colocar nesse lugar, não fizermos nada, deixamos essas mulheres mais vulneráveis ainda. Penso num mandato coletivo, numa coisa horizontal, onde todo mundo tenha condição de pautar. Uma política feita por várias mulheres e vários movimentos.
Qual é a sua principal bandeira política?
A minha principal luta é combater a violência contra a mulher e a criança. São duas formas de violência ainda muito naturalizadas. Temos dispositivos valiosos, como a lei Maria da Penha, mas que ainda precisa ser interiorizada, levada para dentro dos estados. Aqui em Santa Catarina vivemos uma situação bastante acentuada, especialmente as mulheres da área rural, tema retratado num documentário chamado “Sozinhas”, da Angela Bastos.
E também tenho como bandeira a atenção integral à vida das mulheres mães. Quase tudo que temos atualmente no Brasil em termos de legislação, que diz respeito a isso, se restringe a gestação, parto e amamentação. Depois que nasce o bebê, as mulheres mães são praticamente deixadas à própria sorte. Não temos medidas afirmativas, políticas publicas de acolhimentos. Temos uma série de déficits que tornam a vida das mães muito mais difíceis.
Por fim, estamos num momento de criminalização dos movimentos sociais. O avanço do fascismo e do conservadorismo no brasil têm tentando deslegitimar todos eles. E uma das bandeiras fortes que trago comigo é que as políticas sejam feitas no diálogo com a população e os movimentos sociais, porque são eles que têm condições de oferecer o melhor retrato do que eles tratam.
Acho fundamental reunir os movimentos sociais, especialmente de mulheres e de mães, para saber o que nós já temos de dispositivos legais e que não estão sendo colocados em prática, para garantir a efetivação do cumprimento dessas leis que já existem. Grande parte dos nossos problemas é que as leis já existem, mas não são aplicadas.
No contexto político, como você vê a necessidade de diálogo sobre o aborto? Isso chegou a passar pela sua cabeça na época da gravidez?
Com certeza, esse é um tema que preciso abordar. Como sanitarista é impossível não pautar isso. É impossível fechar os olhos para as mulheres por más condições de assistência ao aborto.
As que têm dinheiro conseguem abortar em situação de gravidez indesejada. Quem morre são as mulheres pobres. Então essa questão, da mesma maneira que é feita em muitos países, precisa ser discutida aqui também. Já passou da hora.
O número de mortes de mulheres por abortamento no Brasil é comparável a países que não têm sequer o saneamento que temos. É preciso caminhar muito, mesmo já tendo alguns avanços por aí. Essa questão precisa acompanhar isso.
Da mesma maneira que o movimento pela humanização do parto vem crescendo, o movimento para garantir atendimento às mulheres que não querem seguir em frente com a gestação precisa se fortalecer, com base nas evidências científicas e nos números, que é um problema grave de saúde.
Minha gravidez não foi planejada, mas quando soube que estava grávida, simplesmente gostei da ideia. Embora eu tivesse uma série de dúvidas, naquele momento achei que tinha condições de lidar com essa demandae fazer essa escolha. E é isso que eu defendo, que as mulheres tenham condição de fazerem suas escolhas. Que escolhas sejam realmente possíveis. Porque hoje isso não é possível, apenas para as mulheres que têm condições financeiras.
Qual é o mundo que você planeja para a sua filha?
Não planejo mais o mundo para ela. Já me rendi a impermanência das coisas. Talvez planejar seja a gente se apegar a metas que podem mudar com o tempo. E hoje eu não penso no mundo para ela, mas para todas as crianças, mulheres e pessoas. Essa visão do coletivo me é muito clara.
Não tem como a gente estar feliz se outras mulheres não estão. Tenho essa consciência de gênero e grupos muito forte em mim.
O que eu gostaria é que ela seguisse esse caminho no coletivo, que enxergasse isso como parte indispensável da felicidade. A sociedade capitalista estimula o individualismo, a concorrência, a competição. E não tenho esses valores na minha vida. Tenho uma perspectiva socialista e gostaria muito que ela enxergasse esse caminho. Somos uma rede que precisa ser beneficiada coletivamente. É por isso que estou lutando, que me tornei ativista, feminista, sanitarista, para que de alguma forma a gente melhore a vida das pessoas, do coletivo, e não de alguns.
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