Arte

Aldous Huxley, autor de ‘Admirável Mundo Novo’, enviou carta para o aluno George Orwell após ler ‘1984’

20 • 08 • 2018 às 10:02 Vitor Paiva
Vitor Paiva   Redator Vitor Paiva é jornalista, escritor, pesquisador e músico. Nascido no Rio de Janeiro, é Doutor em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio. Trabalhou em diversas publicações desde o início dos anos 2000, escrevendo especialmente sobre música, literatura, contracultura e história da arte.

Quando um autor lança um novo livro, receber boas palavras de seu mestre sobre a obra é mais importante do que qualquer resenha crítica ou sucesso comercial – mesmo quando esse autor é um gigante como o inglês George Orwell, e o livro em questão é o clássico 1984 – ainda mais quando o mestre é outro gênio do estilo, o também inglês Aldous Huxley. Quando o último e mais famoso livro de Orwell foi lançado, o autor fez questão de que a editora enviasse uma cópia para Huxley, sua maior referência – não é difícil perceber a influência de Admirável Mundo Novo sobre 1984.

Aldous Huxley

Mais do que se a resenha foi ou não elogiosa – a carta contém elogios, ressalvas, comentários e percepções, sendo essencialmente bastante positiva – a fala de Huxley é do tipo mais generosa e proveitosa possível: uma fala aprofundada, que mergulha no livro e nas reflexões que 1984 lhe provocaram.

Acima: George Orwell; abaixo, a primeira edição de sua obra-prima, 1984

O olhar de Huxley sobre o livro é de tal forma profundo que chega a refletir na própria percepção do autor diante de sua obra maior. “Eu sinto que o pesadelo de 1984 está destinado a ser modulado ao pesadelo de um mundo mais semelhante ao que eu imaginei em Admirável Mundo Novo”, escreve Huxley para Orwell.

Primeira edição inglesa de “Admirável Mundo Novo”

A íntegra da carta, escrita de um mestre das palavras para outro, é uma interessante reflexão não somente sobre o livro de Orwell, mas sobre política, governos, estado, paranoia e controle.

 

“Wrightwood. Cal.

21 de outubro de 1949

Querido Sr. Orwell,

Foi muito gentil da sua parte pedir aos editores que me enviassem uma cópia do seu livro. Ela chegou enquanto eu estava em meio a um trabalho que me demandava muita leitura e consultas de referências; e como a falta de visão faz com que seja necessário racionar a minha leitura, eu tive que esperar por muito tempo antes de ser capaz se embarcar em 1984.

Concordando com tudo o que a crítica escreveu sobre isso, eu não preciso te dizer, mais uma vez, o quão bom e profundamente importante o livro é. No lugar, posso falar sobre o que o livro aborda, — a revolução definitiva? as primeiras pistas de uma filosofia da revolução definitiva? — a revolução que está além da política e da economia, que aponta para a subversão total da psicologia e fisiologia do indivíduo — que podem ser encontradas em Marquês de Sade, que se considerava o continuador, o consumador de Robespierre e Babeuf. A filosofia da minoria dominante em 1984 é de um sadismo que foi levado à sua conclusão lógica, indo além do sexo e negando-o.

Se a política do “boot-on-the-face” realmente pode continuar indefinidamente me parece duvidoso. Minha crença é de que a oligarquia dirigente irá achar formas menos árduas e perdulárias de governar e de satisfazer a sua cobiça por poder, e estas formas irão se assemelhar àquelas que eu descrevo em Admirável Mundo Novo. Recentemente, eu tive a oportunidade de pesquisar sobre a história do magnetismo e do hipnotismo animal, e fiquei bastante impressionado pela forma que, por 150 anos, o mundo se recusou a reconhecer seriamente as descobertas de Mesmer, Braid, Esdaile e o restante.

Em parte por causa do materialismo prevalecente e em parte por causa da respeitabilidade predominante, filósofos do século 19 e homens da ciência não estavam inclinados à investigar os fatos mais estranhos da psicologia para homens práticos, como políticos, soldados e policiais, para aplicar no campo do governo. Graças à ignorância voluntária dos nosso pais, o advento da revolução definitiva foi adiado em cinco ou seis gerações. Outro incidente da sorte foi a incapacidade de Freud de hipnotizar pacientes com sucesso e seu descrédito ao hipnotismo. Isso atrasou a aplicação geral do hipnotismo na psiquiatria por pelo menos 40 anos. Mas agora psico-análises estão sendo combinadas com a hipnose; e a hipnose se tornou fácil e indefinidamente extensível através do uso de barbitúricos, que induzem a um estado hipnótico e sugestivo mesmo nos assuntos mais recalcitrantes.

Dentro da próxima geração, eu acredito que os governadores do mundo irão descobrir que o condicionamento infantil e a narco-hipnose são mais eficientes, como instrumentos de governança, do que porretes e prisões, e que a cobiça pelo poder pode ser completamente satisfeita ao sugerir que as pessoas amem a sua servidão, ao invés de chicoteá-las e chutá-las à obediência. Em outras palavras, eu sinto que o pesadelo de 1984 está destinado a ser modulado ao pesadelo de um mundo mais semelhante ao que eu imaginei em Admirável Mundo Novo. A mudança surgirá como resultado de uma necessidade sentida [pelo governo] para o aumento da eficiência. Enquanto isso, claro, pode haver uma guerra atômica e em maior escala biológica — caso em que teremos pesadelos de tipos diferentes e inimagináveis.

Obrigada mais uma vez pelo livro.

Atenciosamente,

Aldous Huxley”

Detalhe da carta original, com a assinatura de Huxley

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