Inspiração

Seu marido foi assassinado pela ditadura. Ela então se tornou advogada para defender pessoas na mesma situação

14 • 12 • 2018 às 11:25
Atualizada em 17 • 12 • 2018 às 10:59
Vitor Paiva
Vitor Paiva   Redator Vitor Paiva é jornalista, escritor, pesquisador e músico. Nascido no Rio de Janeiro, é Doutor em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio. Trabalhou em diversas publicações desde o início dos anos 2000, escrevendo especialmente sobre música, literatura, contracultura e história da arte.

Um país que celebra a ditadura militar que ajudou a perfurar ainda mais fundo o fundo do poço de sua história, e que perseguiu, torturou e matou seus cidadãos é um país suicida, que deseja sua própria miséria absoluta. Se, por um lado, hoje vemos esse Brasil que se auto-destrói levantando-se dos escombros de um passado sombrio que lamentavelmente tentamos fingir que não aconteceu – enquanto alguns idiotas úteis de fato pensam que o passado desaparece de fato se a gente, com toda força, acreditar –, paradoxalmente esse é o mesmo país que pôde luminosamente parir e servir de morada à vida e luta de uma grande mulher como Eunice Paiva.

Eunice ao lado do Marido, o deputado Rubens Paiva

Para se tornar um símbolo da luta contra a ditadura militar no Brasil, Eunice precisou perder a própria liberdade, a segurança e a certeza da integridade de sua família e, principalmente, perder seu marido. Eunice era viúva de Rubens Paiva, deputado federal que teve seu mandato caçado quando do golpe militar, em 1964, e que, em 1971, foi preso, torturado e assassinado pelo regime. Formada primeiramente em Letras, após o desaparecimento do marido Eunice se formou em Direito, para se tornar uma aguerrida combatente pela democracia, a liberdade, contra a ditadura e pela justiça – no caso da morte de Rubens Paiva e em todos os outros crimes e assassinatos cometidos pelo estado durante o período.

Eleito deputado em 1962 pelo PTB, Rubens Paiva teve seu mandato caçado já no AI-1, primeiro ato institucional da junta militar que assumiu o poder após o golpe. Paiva exilou-se na Iugoslávia e na França, mas decidiu voltar ao Brasil. Segundo consta, a perseguição inclemente a qualquer suspeita de subversão ou orientação à esquerda fez com que os militares concluíssem que Rubens, morando no Rio e trabalhando novamente com Engenharia (sua profissão antes de adentrar a política) seria um contato de militantes revolucionários de esquerda – e que prende-lo o levariam até o temido e procurado líder Carlos Lamarca.

Rubens e Eunice

Em 20 de Janeiro de 1971, tanto Rubens quanto a própria Eunice, junto com sua filha Eliana, de somente quinze anos, foram presos. Eliana foi solta no dia seguinte, Eunice permaneceu presa e incomunicável por doze dias, mas Rubens Paiva jamais voltaria para casa. Intensamente torturado, proibido de se alimentar e beber água e sem receber tratamento médico algum, Paiva teria morrido na noite entre o dia de sua prisão e o dia seguinte, por conta das pancadas, hemorragias internas e ferimentos provenientes das sessões de tortura. O motivo pelo qual a ditadura manteve Eunice presa por mais onze dias, mesmo após a morte do marido, para além da crueldade mera e do simples terror, permanecem desconhecidos.

A família na primeira foto tirada após a morte de Rubens

Os anos seguintes de sua vida, desde sua soltura e da confirmação do desaparecimento do marido, foram dedicados à luta que, se inicialmente afirmava-se como uma causa pessoal e familiar, rapidamente transformou-se em um posicionamento pelo país e a liberdade como um todo. Eunice integrou o movimento “Desaparecidos políticos do Brasil” e liderou, junto de nomes como o da estilista Zuzu Angel (que teve o filho, Stuart Angel, também brutalmente assassinado pelo regime, e que seria ela mesma morta por ação de agentes da ditadura) diversas campanhas pela verdade e a abertura dos arquivos militares. Como advogada, especializou-se em direitos indígenas, e trabalhou como consultora para o governo federal, o Banco Mundial e a ONU.

Eunice enfim com o atestado de óbito do marido; ao fundo, seu filho Marcelo Rubens Paiva

Sua luta foi central para que o então presidente Fernando Henrique Cardoso sancionasse a Lei dos Desaparecidos Políticos, que justamente reconhece como mortas pessoas assassinadas e desaparecidas por perseguição política no período entre 1961 e 1979. Somente em 1996 Eunice pôde enfim receber o atestado de óbito do marido, oficializando assim seu assassinato pela ditadura. Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade, a partir de investigações e confissões de oficiais ainda vivos, finalmente denunciou cinco militares pelo assassinato de Rubens nas dependências do DOI-Codi, no Rio. Seu corpo, porém, nunca foi encontrado.

Nesse perpétuo horóscopo de paradoxos e coincidências que parece reger o Brasil, Eunice faleceu no justo dia dos 50 anos do AI-5, o mais terrível capítulo institucional da ditadura (que fechou o congresso e permitiu a perseguição e a prisão sem qualquer critério, suspendendo as garantias legais da população e o direito ao habeas corpus e, assim, oficializando a tortura e o poder sem fim do regime) e um dos mais nefastos atos governamentais da história do Brasil. Foi a assinatura do AI-5 que facilitou que Rubens Paiva e tantos outros fossem presos e assassinados, iniciando assim o período mais duro e violento da ditadura militar no Brasil.

Eunice, em sua casa, com um retrato de Rubens

Eunice morreu aos 86 anos, por complicações provenientes do Mal de Alzheimer, deixando cinco filhos – entre eles, o escritor Marcelo Rubens Paiva, que em 2015 escreveu o livro “Ainda estou aqui”, contando a vida e luta de sua mãe, a quem o autor se referia como “A heroína da família”. Em entrevista, Marcelo comentou não só a sabedoria, altivez e alegria com que a mãe conduziu sua vida, como também a falta que fará, em especial para o “Brasil de hoje”.

O escritor Marcelo Rubens Paiva, filho de Eunice e Rubens

Que Eunice Paiva tenha falecido justamente no 13 de dezembro em que o AI-5 completou 50 anos pode ser somente mais uma mera coincidência assombrosa – mas pode ser também, nesse eterno desenrolar de paradoxos que conduz o Brasil, uma oportunidade: que, quando os horrores do regime militar finalmente ficarem para trás, como marcas de um passado que combateremos sempre, enquanto nação, como uma decisão de que queremos viver num país livre e mais justo, esse dia deixe de ser uma lembrança sombria, para se tornar uma data solar, a recordar a força de uma mulher que lutou efetivamente por um país melhor – por um Brasil que esteja sempre à altura de seu próprio povo, sua luta e força, com justiça e liberdade.

 

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