Diversidade

A evolução de mulheres transexuais no cinema é um marco de representatividade

08 • 03 • 2019 às 11:24
Atualizada em 11 • 03 • 2019 às 11:07
Brunella Nunes
Brunella Nunes Jornalista por completo e absoluto amor a causa, Brunella vive em São Paulo, essa cidade louca que é palco de boa parte de suas histórias. Tem paixão e formação em artes, além de se interessar por ciência, tecnologia, sustentabilidade e outras cositas más. Escreve sobre inovação, cultura, viagem, comportamento e o que mais der na telha.

O ano de 1907 ficou marcado como a estreia das atrizes nas produções cinematográficas. Hoje, 112 anos depois, elas seguem na luta por reconhecimento, equidade salarial e respeito mínimo, implorado em campanhas anti-assédio. Para as mulheres transexuais no cinema, as demandas são as mesmas, é claro, mas as batalhas são muito mais intensas e numerosas, iniciando-se na conquista do simples espaço de representação, tão difícil de ser alcançada.

A presença de homens em papéis femininos não é novidade. Vimos Jaye Davidson como Dil em “Traídos pelo Desejo“, Jared Leto como Rayon em “Clube de Compras Dallas“, Eddie Redmayne como Lili em “A Garota Dinamarquesa” e Toni Cantó como Lola em “Tudo Sobre Minha Mãe”. Todos foram inesquecíveis em seus trabalhos, reverenciados e até premiados. Bons intérpretes, é verdade. Porém, nenhum deles é transexual, e sim homens cisgêneros, brancos e, até onde sabemos, héteros.

Existe uma reivindicação bastante relevante é genuína por parte do público trans inserido nas artes: participação. “É preciso pensarmos em empregabilidade e inserção social, em primeiro lugar, daí as mulheres e homens trans atores devem ser sempre a prioridade”, contou ao Hypeness Julia Katharine, a primeira cineasta trans a estrear no circuito comercial, com o ultra intimista longa “Lembro Mais dos Corvos” e o curta “Tea for Two“.

Recentemente, Carolina Ferraz deu vida a Glória, uma travesti, no drama “A Glória e a Graça“, ao lado da atriz trans Carol Marra (que deu o primeiro beijo transexual da TV brasileira na série “PSi”), que interpreta sua melhor amiga. A história é interessante, pois trata da nova composição da família contemporânea, deixando de lado os papéis caricatos e clichês de personagens LGBTI+. Bem sucedida, Glória está sem ver a irmã há 15 anos, mas ela reaparece repentinamente pois está com a saúde debilitada e tem pouco tempo de vida, gerando uma preocupação com o destino de seus filhos.

Para Juliana, o cinema deve ser aberto a variadas perspectivas, mas nesse momento já está mais do que na hora de abrir as portas para o lugar de fala e a representatividade. “Atores cisgêneros já nos representaram muitas vezes e poucos conseguiram fazer isso de um modo respeitoso, tenho que dizer, por mais bem intencionados que fossem. Mas não acredito em proibição e não apoio nenhum tipo de censura. O que eu quero é mais empatia e entendimento de que nesse momento, politicamente falando, é muito importante a representatividade trans ser legitimada. Então é hora de nós nos representarmos e conquistarmos nosso espaço.

Contra o chamado “trans fake”, foi criado o MONART - Movimento Nacional de Artistas Transexuais, que luta pela humanização e naturalização das identidades e presenças trans nos espaços de arte, englobando travestis, mulheres e homens trans, e pessoas trans não binárias. A fundadora Renata Carvalho, que é atriz, transpóloga e transfeminista, aproveita a iniciativa para dar broncas em apropriações de discurso, levantar debates, divulgar eventos e espetáculos com elenco trans.

Julia Katharine em cena no curta “Tea for Two”, dirigido, roteirizado e atuado por ela.

As conquistas delas

Ainda assim, as pequenas grandes vitórias cotidianas devem ser celebradas e propagadas aos quatro cantos do mundo. Temos que nos recordar da presença marcante de algumas poucas artistas que fizeram história quando ser uma mulher trans ou travesti era apenas “um personagem cômico”: Alexis Arquette, que vivia um dilema psicológico com sua transexualidade dos anos 1990 até 2013; Roberta Close, que foi a primeira mulher trans operada a posar nua para a Playboy do Brasil; e Rogéria, artista muito respeitada no país, que brilhou lindamente no filme “Divinas Divas“, dedicado a relembrar a primeira geração de artistas travestis brasileiras.

Na história recente, pudemos presenciar o primeiro longa com uma atriz trans a ganhar o Oscar pelo Melhor Filme Estrangeiro, em 2018. O chileno “Uma Mulher Fantástica” é estrelado por Daniela Vega, cantora e primeira atriz transexual a ser indicada na premiação da Academia, que protagoniza Marina, uma jovem em luto, diante de uma sociedade conservadora e preconceituosa no Chile.

Daniela Vega em cena de “Uma Mulher Fantástica”

“Tangerine” traz à tona duas mulheres trans que nunca haviam atuado antes.

No cinema independente, “Tangerine“, de Sean Baker, foi aclamado pela crítica e no Festival de Sundance. O longa filmado apenas com iPhone aborda a cultura das transexuais que são profissionais do sexo em Los Angeles, com duas mulheres trans nos papéis principais. Mya Taylor e Kitana Kiki Rodriguez nunca tinham atuado antes.

Na cena brasileira, René Guerra aposta na história de uma travesti que quer ser mãe em “Vaca Profana“, interpretada por Roberta Gretchen Coppola. Já no documentário “Eu, Um Outro“, Silvia Batista Godinho e a Claudia Santos tiveram a consciência de contratar uma equipe de pessoas trans para a produção sobre três jovens transgêneros. No filme político “Kbela“, além de ter várias mulheres negras em sua concepção, traz Maria Clara Araújo, uma mulher trans, como uma das protagonistas.

O fio de meada chega até a televisão também. Depois de fazer sucesso na série norte americana “Orange is the New Black” e ser a primeira transexual indicada ao Emmy Awards, Laverne Cox definitivamente abriu as portas para outras mulheres trans, como Jaime Clayton em “Sense8“. A ativista e atriz Nicole Maine foi anunciada como a primeira primeira super-heroína trans da televisão norte americana, participando da série “Supergirl“.

A representatividade trans presente na série “Pose“, do canal FX, vem dando o que falar. Criada por Ryan Murphy, Brad Falchuck e Steven Canals, trata do tema com respeito, profundidade e sensibilidade, além de incluir um número bem significativo de personagens e artistas trans no elenco. Um grande passo a frente para o público LGBTI+. Referências de “Paris is Burning“, documentário de 1990 sobre drag queens, negros, latinos e pobres de NY, foram bem aproveitadas pelo seriado.

Cena de “Paris is Burning”, que retratou a cena gay dos anos 80.

Hoje, o canal FX investe em “Pose”, série com o maior elenco transgênero da TV

Também já podemos ver uma atriz trans atuando em novela teen da Rede Globo. A travesti carioca Gabriela Loran estreou em “Malhação“, para levar temas como transfobia, respeito e tolerância ao enredo direcionado para adolescentes. Na certidão de nascimento dela consta o nome social e o gênero feminino na lacuna “sexo”, alterado -  e comemorado  -  quando ela fez 25 anos de idade.

Nesse momento, é sim importante, fundamental, ter mulheres trans representando a si mesmas nas artes. Mas vale lembrar: por ora, os papéis ainda são bem limitados e limitantes, resumindo uma mulher transexual a interpretar, nada mais, nada menos, do que uma mulher transexual. Acima de tudo, é preciso recordar que elas são pessoas, seres humanas, atrizes.

Ou seja, poderiam interpretar diversas figuras nos palcos de um teatro ou nas telonas do cinema, sem se pautar apenas em assuntos que as permeiam constantemente, como a prostituição e o sexo. “De certo modo, eu me via representada no cinema, pois me identificava com as mulheres cis e muitas de suas questões. Mas sempre senti falta de ver mulheres trans e travestis vivenciando no cinema os mesmos lugares que as mulheres cis, sem serem objetificadas e exploradas de maneira negativa e sensacionalista, pontuou Julia.

Cabe a indústria saber conduzi-las a toda a pluralidade do papel da mulher, que elas tanto lutam para ter da vida real à ficção.

Gabriela Loran ganhou o papel de Priscila em Malhação Vidas Brasileiras.

 

As mulheres trans de “Pose”.

 

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