Ao dobrar à esquerda em uma das ruas do barulhento e diverso centro de São Paulo, o ruído de buzinas e escapamentos de carros e ônibus abrem espaço para os sons de apitos. Ouço um agogô. Tenho certeza que este aqui é o barulho do tambor.
Não dá pra saber bem, mas ao se aproximar o branco das roupas e do sorriso contrastado pela pele negra de homens e mulheres passa uma certeza. Estamos no lugar certo. Terra de resistência em meio ao caos instaurado.
O conturbado (será que não foi sempre assim?) ano de 2019 mal começou e já está chegando ao fim. Pelo menos para a moçada do Bloco Afro Afirmativo Ilu Inã. Já é Carnaval cidade, acorda pra ver.
Sob a batuta de Fernando Alabê e acompanhado pelos olhares atentos de um desenho gigante de Marielle Franco – escuta as mulheres – 120 pessoas realizam os ajustes finais para o grande dia.

Ilu, sob os olhos atentos dos orixás
“É um protagonismo por instância e pela necessidade de juntar pessoas que se identificam com os tambores; com os nossos movimentos e que querem não resgatar, mas reencontrar isso na sua essência. Nossas matrizes. Muitos dos que estão aqui são profissionais liberais, contadores, doutores e doutoras, acadêmicos e tal. Durante um bom tempo da suas vidas ficaram à margem de nossas expressões por causa das demandas das carreiras. Então, isso é um reencontro dessas pessoas com as nossas expressões”, explica ao Hypeness um efusivo Fernando Alabê. Pudera, só por causa do toró que atingiu a região dos Campos Elísios em uma tarde quente de domingo consegui tirar o Alabê da coisa que mais gosta de fazer, ensinar.
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O Ilu Inã nasceu em 2016, a partir da união de Fernando e sua irmã, Fefê Camilo. Os dois são a prova viva de que não há nada mais furado do que o papo de que São Paulo é túmulo do samba. Nada disso, a cosmopolita metrópole assume devagarinho o protagonismo de um Carnaval que brinca, mas sem perder a seriedade.
“Fundamos o bloco em março e começamos a ensaiar em setembro. São três anos de Bloco Afro Afirmativo Ilu Inã. O samba sempre esteve próximo de nossa família. Tanto eu quanto ela somos músicos percussionistas, educadores e empreendedores artísticos culturais”, diz Alabê.

Com samba no pé, o centro de São Paulo sempre foi negro
Protagonismo. Pra bom entendedor meia palavra basta. No Ilu Inã a perspectiva parte de um olhar afrocentrado. Nada de hierarquia, a diversidade dos vários tons de negro convive harmonicamente com os tambores que hipnotizam e recolocam a ancestralidade negra em seu lugar de direito. Com a permissão de Exu, claro.
“Temos uma produtora – uma startup, calcada no protagonismo negro e que tem como proposta o Bloco Afirmativo Ilu Inã. É um protagonismo pela instância de sermos dois irmãos negros com a necessidade de juntar pessoas que se identificam com os tambores, com os nossos movimentos, que querem não resgatar, mas reencontrar isso na sua essência. Nossas matrizes”.
Com a licença da rima, Alabê é experiente e resistente. São 15 anos de trabalho como percussionista e ao lado de grupos e coletivos de teatro e arte. Em um cenário onde o autoritarismo parece se colocar como saída única, a tranquilidade do branco de Oxalá e a justiça determinada de Xangô, dão a potência necessária para reverter o jogo. Cultura pela cultura.
Observo essa onda negra – como diz bem o doutor Salloma Salomão, crescente de propostas afro afirmativas, de afro identidade. Fazemos parte desse movimento. O impacto vem sendo sentido paulatinamente há 15 anos. É um processo como os que outros blocos afro passam. Eu saio há 29 anos na Vai-Vai. Então, tudo isso faz parte da minha história. No Ilu Inã tem gente da Mocidade Alegre, da Camisa Verde e Branco. É tudo uma ação. O impacto é um movimento de reencontro, de retomada.

A diversidade dos vários tons de negro
A retomada do quilombo urbano
Talvez sucessivas ondas de embranquecimento tenham escondido o fato de que as raízes do centro da cidade de São Paulo são negras. Ao longo do século 20, manifestações negras – como o Carnaval e futebol saíam de cortiços, botequins e galpões instalados nos bairros da Barra Funda e Bela Vista.
É na Barra Funda – hoje lar de prédios suntuosos, que surgiu o Cordão da Barra Funda com Dionísio Barbosa, em 1914. Quatro décadas depois, Inocêncio Mulata transformaria o bloco na conhecida Camisa Verde e Branco. Na Bela Vista dos anos 1930, um time de futebol se transformou na Vai-Vai.

O Cordão da Barra Funda ainda no início do século 20
Embora a gentrificação tenha acabado com o encanto e colocado a população negra nas bordas invisíveis da metrópole, o trabalho de Fernando Alabê e do Ilu Inã dão vida para um chão carregado de ancestralidade.
Saindo de um lugar de apenas espectadores para agentes. Para atores disso. Tanto em percussão, como em dança e também no canto do bloco. É uma retomada de território, porque aqui onde a gente está na Rua Apa, Santa Cecília, Campos Elísios, foi praticamente o berço do samba urbano paulistano. Com os processos de gentrificação, muitas pessoas foram sendo afastadas para as periferias. Populações negras. A nossa presença nessa região fazendo samba afro, partido alto, samba reggae, samba de enredo, alujá, ramunha, agueré, daró, é muito importante, porque é uma retomada não só do simbólico, como do território geográfico e de nossas propostas enquanto população negra. 50% da população que quer e vem buscar pelo menos metade de tudo que está aí.
O crescimento meteórico e a projeção nacional que a região ganhou comprovam a tese defendida por Fernando. Você já suspeita ou tem certeza, mas os ensaios e o cortejo do Bloco Afro Afirmativo Ilu Inã acontecem no Aparelha Luzia – fundado por Erica Malunguinho, primeira deputada estadual trans eleita em São Paulo.
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Convívio em comunidade – como ensina a religiosidade negra
“Chegamos junto a parceiros, como a própria Aparelha – que não aluga o espaço, mas cede. Cedendo o espaço, a gente junta aqui 200, 300, 400 pessoas num ensaio, tem consumo. Então, o dinheiro gira. Tem ainda o designer que faz a programação visual e a pesquisa do nosso tecido. Contamos com um figurino próprio, que consumiu cinco meses de pesquisa para a criação – foi todo feito por mãos pretas. Eu e minha irmã, os sócios, mais uma equipe de designers pretos e pretas, Fernando Santos e Deuá Rosa, fizemos o tecido. As candaces realizaram o figurino. O nosso site é feito pelo Negro Junior e lá vamos colocar os figurinos para vender. Figurinos que as pessoas podem usar depois do Carnaval”.
Como bem ensina Exu – orixá da comunicação, a criação de redes não só fortalece o trabalho, mas proporciona a chance para que pessoas talentosas se reúnam, troquem figurinhas e claro, chamem a atenção da população. Horizontalidade. Em pouco mais de três anos, um bloco de 70 pessoas passou para 120 e foi aplaudido e reconhecido por milhares.

Fernando (à esquerda) vive a musicalidade negra há mais de 15 anos
“Com quase divulgação nenhuma, tivemos 3 mil pessoas na primeira saída em 2016. Um bloco com 70 pessoas trouxe 3 mil. Na segunda saída, novamente 3 mil pessoas. Num circuito separado do circuito do Carnaval. Estamos na zona centro-oeste, então aguardamos sempre, não apenas no sentido demográfico – quantidade de pessoas, mas no sentido de gente que se sensibilizou em fazer o que estamos fazendo. Mostrar para outras pessoas que se sentem capazes de fazer, de se reencontrar, de refazer”.
Axé e inclusão
As religiões de matriz africana mostram que sem comunhão não tem culto. O Bloco Afro Afirmativo Ilu Inã se inspira nos conceitos do Candomblé e Umbanda para propor um Carnaval diferente. Também no bolso.
Demorou, mas chegou. O emprego da palavra racismo é inevitável ao debater a maior festa a céu aberto do mundo. Seja em Salvador, Rio de Janeiro ou São Paulo, o negro criou, mas não participa diretamente da farra. Some os tons claros da pele de passistas e rainhas de bateria com os custos de uma fantasia e o resultado são pretas e pretos assistindo pela TV ou puxando cordas.

Para participar, basta responder: você negro?
No Ilu Inã é diferente. Fernando Alabê e a equipe de administradores do bloco fazem o possível para integrar e tornar acessível o sonho de fazer parte do Carnaval. Além das já citadas parcerias, os preços são mais baixos.
Durante um bom tempo, minha família acabou se afastando porque [o desfile na avenida] ficou caro demais. Uma família de cinco pessoas gasta uma pequena fortuna para poder brincar o Carnaval. Não podemos ser românticos e achar que a gente pode fazer as coisas sem o dinheiro na jogada. O dinheiro tem que circular. Uma fantasia não precisa ser 800 reais. Então, mesmo não sendo uma proposta que pensa em seguir sem o fluxo monetário, praticamos preços que sejam relevantes para bancar a estrutura do desfile.
Para desfilar no cortejo, basta responder uma pergunta simples, porém de extrema relevância. Você é negro? Você é negra?
“A gente pauta que a pessoa se identifique, autodeclare, certo? E afirme-se como negra. Esse é o critério. O se afirmar é falar, eu sou negro, meu pai é negro. É um pouco mais que isso. O que você faz por essa negritude que habita em ti? O que você faz por essa negritude que é sua, é minha e é dos outros? É nesse sentido que a gente propõe e afirmação”.

Alabê: conexão entre aiyê e òrun
Alabê é ogã, aquele que canta e toca em cerimônias de Candomblé. Seus atabaques e mãos são sagradas para o estabelecimento da ligação entre aiyê (terra em iorubá) e òrun (céu em iorubá). Fernando é negro e paulistano. Ao lado de 120 pessoas, faz a diferença e mostra que sim, a diversidade é estrada única para a evolução e a resolução de problemas históricos.
Esqueça o autoritarismo, deixe de lado o baixo astral (com sua permissão, Jorge Aragão) de soluções fáceis e sinta a paixão que emana de quem só quer existir em sua plenitude. Vida longa ao Bloco Afro Afirmativo Ilu Inã. Axé!