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Bullying, abandono e saúde mental: os verdadeiros responsáveis pela tragédia de Suzano

14 • 03 • 2019 às 11:09
Atualizada em 18 • 03 • 2019 às 12:01
Kauê Vieira
Kauê Vieira   Sub-editor Nascido na periferia da zona sul de São Paulo, Kauê Vieira é jornalista desde que se conhece por gente. Apaixonado pela profissão, acumula 10 anos de carreira, com destaque para passagens pela área de cultura. Foi coordenador de comunicação do Projeto Afreaka, idealizou duas edições de um festival promovendo encontros entre Brasil e África contemporânea, além de ter participado da produção de um livro paradidático sobre o ensino de África nas Escolas. Acumula ainda duas passagens pelo Portal Terra. Por fim, ao lado de suas funções no Hypeness, ministra um curso sobre mídia e representatividade e outras coisinhas mais.

O massacre que matou 10 pessoas na Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano (SP), reverbera na cabeça dos que tentam compreender o que pode levar dois jovens a atentarem contra a vida de pessoas inocentes.

Além de recente, o cenário complexo impede a eleição de um único fator responsável por tamanha atrocidade. Guilherme Taucci, 17, e Luiz Henrique de Castro, 25 anos, eram amigos de infância.

Tal como acontece com muitos jovens, jogava videogame e navegando na internet por horas a fio. Guilherme tinha 17 anos. Ele é fruto de um breve relacionamento entre Tatiane Taucci e Rogério Machado Monteiro. O garoto foi criado pelos avós em uma casa do Jardim Imperador.

O massacre requer análise minuciosa do perfil dos assassinos

A mãe passa boa parte do tempo nas ruas. A mulher de 35 anos luta contra a dependência química e ao jornal Folha de São Paulo demonstra não entender a motivação do crime.

“Ele tinha internet, TV a cabo. Tinha tudo. A única coisa é que ele era pirado nesse bagulho de jogo de computador”, diz ela, citando que os dois eram distantes. “Nosso relacionamento até que não era ruim. Mas a gente quase não conversava”.

O vice-presidente também lembrou do videogame. Hamilton Mourão manifestou preocupação com o uso excessivo da plataforma por jovens e adolescentes.

“Temos que entender o porquê de isso estar acontecendo. Essas coisas não aconteciam no Brasil. Vemos essa garotada viciada em videogames violentos. Tenho netos e os vejo muitas vezes mergulhados nisso aí”, assinalou.

Guilherme e Luiz Henrique eram figuras frequentes em uma lan house do bairro. Segundo funcionários, a dupla aparecia no local pelo menos três vezes na semana. Eram fechados e xingavam em voz alta durante as partidas.

Caderno de anotações apreendido: obsessão pelo ódio

Tatiane Motta, de 27 anos, trabalhou até fevereiro na lan house frequentada pelos autores do massacre. Ela falou à Folha sobre a preferência deles por jogos de tiro. “Por aqui passam cerca de 100 pessoas por dia. Se isso determinasse alguma coisa, todas as pessoas seriam assassinas”, pondera.

“Quando caminhando em território aberto, Não aborreça ninguém. Se alguém lhe aborrecer, peça-o para parar. Se ele não parar, Destrua-o”. A frase está escrita em um caderno de anotações de Guilherme Taucci apreendido pela Polícia Civil.

As anotações citam uma “bíblia satânica”, apresentam homens encapuzados e palavras de ódio. Por fim, o garoto usa o termo “regras do jogo” para se referir às táticas de vídeo parecidas com jogos como Arena Free Fire e Call of Duty.

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Na lan house, a cautela surgiu quando um deles foi visto com um pingente com a suástica nazista no pescoço. Indícios do flerte com o discurso de ódio. O atentado na Escola Raul Brasil foi planejado por cerca de 1 ano e meio. No período, os rapazes assistiram vídeos de massacres nos Estados Unidos e frequentaram fóruns na dark net. Os chans.

O portal R7 mostrou que Guilherme Taucci Monteiro e Luiz Henrique de Castro pediram dicas e traçaram planos com o auxílio de usuários do Dogolachan – maior fórum de propagação de ódio da internet brasileira.

No espaço de disseminação de racismo, homofobia, misoginia e violação de direitos humanos, eles discutiram abertamente os caminhos para o crime. Depois do atentado, membros usaram a plataforma para celebrar o massacre.

A dupla era frequente em fóruns racistas e violentos

“Muito obrigado pelos conselhos e orientações, DPR. Esperamos do fundo dos nossos corações não cometer esse ato em vão”, escreveu, segundo o R7, um dos atiradores.

Antes de sair para o atentado, o garoto de 17 anos deixou uma foto queimada da mãe e do pai no chão do quarto acanhado e desorganizado. Luiz vivia na mesma calçada de Guilherme. Morava com os pais e os irmãos no fundo de uma casa. Os dois cometeram suicídio logo após o crime.  

Adolescentes, bullying e saúde mental 

Ainda é cedo para determinar causas, porém Guilherme Taucci sofria bullying e abandonou os estudos antes mesmo de concluir o ensino médio. “Não aguentava mais ser zoado por ter espinhas no rosto”, relata a mãe. Ela diz ainda que o avô pagou um tratamento para frear o surgimento de acnes, “melhorou muito”, afirma Tatiane.

A prática é estudada por especialistas norte-americanos em saúde mental há décadas. O psiquiatra Timothy Brewerton – que tratou alguns estudantes sobreviventes ao massacre de Columbine, que matou 13 pessoas em 1999, apresentou ensaio sobre 66 ataques em escolas no mundo.

Os dados são de atentados entre 1966 e 2011. Em 87% deles, vítimas de bullying alimentaram desejo de vingança. “O bullying pode ser considerado a chave para entender o problema e um enorme fator de risco, mas outras características são importantes, como tendências suicidas, problemas mentais e acessos de ira. Não acredito em um estereótipo ou perfil para um assassino potencial nas escolas”, salienta.

Adolescentes respondem por 76% dos ataques, segundo o estudo. Outro ponto alarmante, a grande maioria tinha fácil acesso às armas de parentes. O psiquiatra Timothy Brewerton aconselha, “que os pais fiquem atentos a alguns comportamentos, como maus-tratos contra animais, alternância de estados de humor, tendências incendiárias, isolamento e indiferença”.

Adolescentes em busca de vingança respondem por maioria de ataques

Almerson Cerqueira Passos é psicólogo especializado em Docência do Ensino Superior. Ele acredita ser necessário compreender o que separa o bullying da violência escolar.

“A primeira questão é pensar se o ataque foi bullying ou violência escolar. É preciso separar. Nem tudo o que acontece na escola deve ser visto como bullying. Quando entendemos tudo como bullying, acabamos invisibilizando alguns aspectos graves no processo de criação. Se eu penso que chamar um aluno ou aluna de macaca é bullying, invisibilizo o racismo. Parece que tendemos,  com perspectiva do bullying, a suavizar um pouco o crime, no caso o racismo”, explica em conversa com o Hypeness.

O acadêmico recorda o contexto familiar turbulento de Guilherme. No entanto, o mestrando em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia prefere entender o caso por uma perspectiva interseccional.

“Pensar o bullying como um fenômeno que vem junto com outras opressões históricas que passamos, principalmente brasileiros pretos e pretas. O evento de Suzano serve para reavaliar o modelo de educação para os jovens”, assinala.  

O bullying e a saúde mental preocupam não apenas em casos extremos como o de Suzano. A Universidade de São Paulo, uma das grandes da América Latina, registrou em 2018 seis tentativas de suicídio. Apenas no curso de medicina. A Faculdade de Veterinária e o Instituto de Ciências Biológicas teve oito atos consumados.

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Ao Hypeness, Ivani Oliveira – psicóloga formada pela Universidade Bandeirante de São Paulo, considera o apoio psicológico em escolas e faculdades tão importante quanto aulas de matemática e ciências sociais.

“A psicologia pode colaborar auxiliando a pessoa a identificar as causas do seu sofrimento, compreender as emoções e estabelecer maneiras para lidar com as dificuldades no ambiente acadêmico”, pontua.

Ivani critica a existência no ambiente educacional de noções meritocráticas, utilizadas, segundo ela, para disseminar a sensação de que determinados grupos não são bem-vindos.   

Devido aos processos psicológicos que estão envolvidos na aquisição e explicitação do conhecimento que pode ser facilitado ou dificultado conforme as relações humanas que acontecem dentro das universidades, essas relações são marcadas por diversos sistemas de opressões como machismo, racismo, lgbttfobia e ou preconceito de classe. Todas são geradoras de sofrimento, que acaba sendo intensificado quando estudantes se deparam com dificuldades comuns na  leitura e produção textual, porque a vivência dessa dificuldade somada à vivência do preconceito, pode levar ao entendimento de que aquele não é o seu lugar, conforme o mito da meritocracia.  

Para psicólogo, é preciso reavaliar métodos de ensino no Brasil

O psicólogo baiano dialoga com Ivani Oliveira ao sublinhar o estado da saúde mental dos alunos brasileiros.

Há uma emergência de políticas públicas e de saúde para estudante envolvidos em episódios de bullying escolar. A saúde deve ser pensada enquanto conceito que abarca o bem estar bio-psíquico-espiritual das pessoas. Pensar que a violência se manifesta de inúmeras formas, sutil, velada ou explícita e sob a lógica de sistemas opressores como machismo, racismo, lgbtfobia, é pensar que intimidação e a vitimização são dinâmicas complexas que se produzem nas relações sociais. Principalmente nas escolas, aparelhos ideológicos do Estado.

Segundo Almerson, existe uma compreensão do processo de violência a partir da perspectiva da vítima. Ainda sob o efeito da psicologia interseccional, o psicólogo chama a atenção para a saúde mental do agressor. “Não só a vítima precisa de acolhimento, os agressores também. O bullying resulta em repercussões a médio e longo prazo para ambos”.  

O aluno de mestrado da Universidade Federal da Bahia critica a falta de dados consistentes sobre a personalidade de Guilherme Taucci.  “O único dado que temos sobre bullying é o de que Guilherme abandonou a escola por causa de espinhas”.

Enquanto pesquisador negro, ele relaciona alguns elementos importantes na constituição mental dos dois, como o discurso de ódio e o flerte com regimes genocidas presentes em símbolos ostentados por Guilherme Luiz Henrique. “Eles usavam uma suástica nazista. Se eles compartilhavam esse símbolo e são lidos enquanto homens brancos, devemos pensar em questões históricas. Eles não tiveram tal atitude apenas por serem de uma família que não está estruturada dentro dos padrões da família nuclear burguesa”.

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Fotos: foto 1: Reprodução/foto 2: Talita Marchao/UOL/foto 3: Reprodução/R7/foto 4: Reprodução/foto 5: Reprodução


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