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“Há uma ideia superficial de colocar a festa, a noite como algo fútil, então só de colocar gays, gordos e trans no mesmo lugar se divertindo, a subversão já está acontecendo assim”. Com essa frase, o mini documentário da festa Batekoo já mostra a que veio. Trazendo algo novo para o front e traduzindo em batidas o que as ditas minorias guardam dentro de si, o evento já agita quatro grandes capitais brasileiras com todos os tons da liberdade.
A produção, que é parte da série Inspire the Night, da Red Bull TV, tem cara festiva porém não se aprofunda apenas nisso. Mais do que uma “baladinha top“, a Batekoo é um movimento periférico, afrofuturista e LGBTQIA, que prega o respeito pelo ser humano em suas mais variadas distinções. É um lugar onde a existência de ninguém é ameaçada ou atacada, e sim celebrada.
A semente do coletivo baiano se espalhou de Salvador para São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Entre as 12 milhões de pessoas na capital paulista, 40% são negras e ao menos 10% delas já passou ou deveria ter passado pela noite animada da festa, embalada por hip-hop, trap, twerk e funk de origem 100% preta.
Jovens da periferia vão das margens ao estrelato, porque ali todo mundo brilha, seja pelo direito de existir ou pelo bem estar coletivo. No documentário, acompanhamos um recorte das trajetórias tanto do público quanto dos criadores. Os artistas Rincon Sapiência, Karol Conká e MC Soffia participam com seus relatos de como a festa impactou toda a comunidade afrodescendente.
Tudo isso realmente daria um filme. Terreno fértil para a autoestima subir, a Batekoo é um abraço coladinho, uma mão que se estende, um beijo na nuca que causa arrepio. É se expressar sem se preocupar com o dinheiro na conta, o tamanho do decote, as curvas do corpo, a origem do cabelo, a cor da pele e o que mais aparecer no espelho. É ver e ser visto, ser quisto e desejado num ambiente que proporciona o empoderamento pelo simples fato de existir.
É a conquista do respeito mútuo que veio assim, batendo o koo. Dois dos idealizadores da festa, Maurício Sacramento e Artur Santoro, dividem com a gente as dores e as delícias do movimento mais libertário das pistas.
Hypeness – A noite paulistana tem passado por mudanças nos últimos anos, com várias baladas consagradas fechando as portas. Queria saber a opinião de vocês sobre isso…o que aconteceu com as baladas, afinal? Ficou chato?
Maurício : Acho que o cenário mudou, e as pessoas reavaliaram o serviço e o tratamento que lhes eram prestados. Além do mercado musical e da cultura no Brasil que vem mudando muito e tendo outras influências.
Artur : Eu acredito que as baladas não conseguiram acompanhar uma demanda de mais acessibilidade em seus espaços e, por consequência, um público e estética mais diversos e inclusivos. Desde o preço de ingresso e bar até line up de DJs. O público cada vez mais reivindica coerência e diversidade.
– Vocês enxergam alguma diferença entre as festas de Salvador, São Paulo, Rio e Brasília? Qual seria?
Maurício: Sim. Cada cidade tem suas características regionais, e quando falamos de cultura produzida na periferia isso fica cada vez mais evidente. A Batekoo tem uma ideologia de entender como cultura aquilo que ainda é tido como contra cultura, os ritmos marginalizados que nascem de forma independente. Geralmente essa revolução musical vem das periferias. Em Salvador, o ritmo que domina as pistas é o pagodão baiano, no Rio de Janeiro é o Funk 150 BPM, em São Paulo é o funk paulista, em Recife é o brega funk… Em São Paulo e Rio, o “jersey”, ritmo que marca a dança Vogue, nascida nos Estados Unidos com a comunidade LGBT, tem crescido cada vez mais também.
Artur : Totalmente! Cada territorialidade distinta possui uma musicalidade e ritmos distintos. No Rio, o funk 150bpm é pesado; em Recife, temos muito brega funk; por outro lado, em Salvador, tem muito axé bahia. Cada estado tem sua música e ritmos típicos, populares e pretos.
– Já são muitos anos de pista. Como vocês avaliam a evolução da Batekoo até aqui e para onde ela vai?
Maurício : A gente começou a Batekoo sem planejamento, e a ideia foi tão legítima e necessária que deu no que deu. A gente passou por um processo lento de entender a Batekoo também como o nosso trabalho para além do movimento, e como a gente se organizando e planejando melhor, poderia oferecer um melhor resultado para os nossos. Hoje, queremos cada vez mais entender a Batekoo como uma plataforma e poder exercer mais projetos para além de festa. Estamos caminhando para uma expansão maior no Brasil (e, quem sabe, fora?), além de trabalhar mais diretamente com produção musical, produção de conteúdo, projetos educacionais e eventos maiores. Nosso primeiro festival está chegando.
Artur : O ano de 2018 foi muito marcante para nós. A festa mais que dobrou de tamanho e o trabalho triplicou. Nós entendemos que, para além do nosso esforço, a Batekoo tem crescido porque ela atende a uma demanda já existente: um espaço seguro, acessível e voltado para pessoas negras e LGBTs. O nosso plano em 2019, para além de expansões pelo Brasil, é ir além e explorar todas as potencialidades que a rede, criada pelo nosso projeto, tem a oferecer.
– A cidade de SP, com as pessoas querendo ou não, sempre foi diversa, embora tenha mudanças ao longo dos anos. Vocês a consideram acolhedora nesse sentido? É um bom lugar, dentro dos parâmetros brasileiros, para ser quem você quiser ser?
Maurício : Uma das coisas que me faz admirar São Paulo, em comparação com o resto do Brasil, é a diversidade de círculos e corpos. Existem muitas pessoas fora da caixa e isso não é tratado como diferente, pelo contrário. Essa liberdade que a cidade transpira é inspiradora e me faz acreditar que podemos viver em sociedade da forma que quisermos ser.
Artur - Dentro dos parâmetros brasileiros, é uma cidade que permite a muitas pessoas essa liberdade que buscamos, permite a muitos serem o que quiser. Todavia, estamos ainda longe do ideal. E a nossa meta é essa.
– A Batekoo celebra as diferenças e a liberdade. Dentro de um país violento e que não sabe respeitar o próximo, ganha a característica de ser subversiva e afrontosa. Vocês já tiveram de lidar com a censura? Já houve tentativas de acabar com a festa? Como foi isso?
Maurício : De acabar com a festa não, mas censura já houve bastante. Acontece bastante de sermos convidados para fazer participação em eventos de terceiros e as músicas que nascem nas periferias, como por exemplo, o funk carioca, serem “aconselhadas” a não serem tocadas…
Artur : Nunca tentaram acabar com a festa de fato. O que mais acaba rolando é quando somos convidados para alguns eventos em espaços mais de elite e que as pessoas pedem para que toquemos menos funk explícito. Há alguns anos, rolou uma situação em um evento de uma marca que, durante um discurso político que estávamos fazendo durante a festa, pediu “menos política e mais festa”. Dá para ver que a pessoa não tinha noção alguma sobre o que é a Batekoo e que a festa é sobre política o tempo inteiro.
– O movimento negro no Brasil está bem engajado, embora ainda falte muitas conquistas. Mas não está mais do que na hora de colocar a população afrodescendente, que representa 54% do país, longe do título de minoria? As pessoas podem levar isso ao pé da letra, dando a entender que essa fatia é a “menor” e, portanto, menos relevante, o que não é verdade.
Artur : Sendo sincero, para mim tanto faz se chamaremos de minoria ou não. A ideia de minoria é um conceito político e, por isso, não deve ser levado ao pé da letra. Refere-se a uma parcela da população que se encontra em privação de direitos sociais básicos. Acredito que, no geral, as pessoas compreendem isso e sabem que essas coisas acontecem. O que eu acho que falta entender, principalmente, é o porquê dos negros serem a maioria nos presídios e a minoria nas universidade públicas; ou, ainda, o porquê dos negros serem a maioria nas favelas e a minoria nos bairros com infraestrutura, nos bairros nobres. É preciso entender que há um genocídio da juventude negra em curso.
Maurício : Não acho que esse seja o X da questão, é tratado como minoria justamente porque é visto como minoria. É daí que vem o racismo. Que limita, exclui, fere, e se estrutura. A população negra é a que mais morre, é a que é mais assassinada, é a que mais reside em periferias e lugares precários, é a que menos tem poder aquisitivo, é a maioria da população de baixa renda, moradores de rua, nos índices de criminalidade(que é o resultado de tudo isso)… e o racismo funciona de forma inteligente fazendo tudo girar para isso permanecer. Não é fácil contrariar quando se luta contra uma estrutura.
Nos negam educação, trabalho, beleza, índole, caráter, futuro, referências… e nos fazem acreditar que não somos bons o suficiente. Por isso somos tratados e vistos como minoria, mesmo não sendo, fazendo até nós mesmos acreditarmos nisso. A burguesia se beneficia do racismo, e trabalha para que continue assim.
Maurício: um dos idealizadores da Batekoo no RJ
– Nem todo mundo que ouve black music entende o que ela representa e onde está inserida. Vocês enxergam um problema aí ou a música é universal e para todos, independente de profundidade de compreensão?
Maurício : A música é para todos, mas saber de sua origem também é importante. Pensando que esses artistas, principalmente negros, tem isso como seu trabalho, não enxergo a necessidade de tornar esse conhecimento uma necessidade. Mas se de alguma forma a pessoa que está consumindo se aprofunda nisso, sim.
Artur : A música é universal, assim como qualquer tipo de arte, ela é para todos ouvirem. O problema é que, a partir do momento em que você ignora o contexto de produção, a letra ou a proposta do artista, você tem uma percepção mais rasa da mensagem que a música quer passar. Acredito que compreender de fato uma expressão artística, entendendo o que o artista está propondo ou até mesmo outras interpretações possíveis a partir desse cenário, é o que todo mundo quer, não?
– A comunidade LGBT também tem muitos preconceitos e barreiras para quebrar dentro dela mesma. A partir do momento que rola preconceito dentro da própria festa, vocês ficam frustrados? Como lidam com esse paradoxo onde ao mesmo tempo em que precisam acolher esse nicho também precisam se posicionar para que não aconteça mais?
Maurício : Não é comum acontecer algum ato de discriminação dentro da Batekoo, mas estamos sempre preparados para lidar com situações do tipo. Nosso discurso é direto, a batekoo se tornou um espaço de reeducação para as pessoas que frequentam e vão pela primeira vez. Quando por exemplo, homens héteros que frequentam já sabem que naquele lugar eles não têm espaço para ser desrespeitosos com qualquer mulher, ou LGBTT. Ele leva isso para fora dali também.
Artur : Acho que é possível contar em uma mão os problemas do tipo que tivemos dentro das festas. A Batekoo se diferencia por ser uma festa que se posiciona de maneira direta e objetiva. A nossa mensagem é explícita para todos e qualquer um que cola no rolê já sabe nossas bandeiras, princípios e o que defendemos. Quem cola ou já sabe como é o rolê, ou aprende lá a postura na festa.
– Como combater o ódio sem confrontar com mais ódio ainda? Porque vocês receberam uns comentários bem pesados nas redes sociais em julho do ano passado…
Maurício : Sempre optamos por utilizar as ferramentas da arte e da comunicação para propagar nossas ideias. A BATEKOO nasceu assim. Os comentários serviram de inspiração para ideias de como combater a homofobia, racismo, gordofobia e lgbtfobia de outras formas, conscientizando quem está sofrendo os ataques a lidar melhor com isso, principalmente.
Artur : Eu tenho raiva e tenho ódio. Isso é um fato. Claro que eu sinto ódio de pessoas quando vejo comentários racistas. Eu sinto raiva de racismo, eu sinto raiva das situações pelas quais sou submetido todos os dias, seja por ser negro ou por ser gay. Eu vivo com a raiva dentro de mim de forma constante.
Eu utilizo a minha raiva e o meu ódio como potência criativa. Ou eu crio, produzo, escrevo, me movimento, ou a raiva me consome. A Batekoo é, antes de tudo, uma resposta ao racismo estrutural.
Artur Santoro sendo bem rainha com suas madeixas coloridas
– Vocês ajudam muita gente, especialmente os jovens, a se identificarem, a encontrarem seu lugar no mundo e a abraçarem o próprio corpo. O seu público, se não tem essa consciência ainda, passa a ter. Como foi esse processo para vocês mesmos? Faltou Batekoo na sua vida?
Maurício : Ah, eu particularmente me sinto um espelho do que que é a Batekoo. Foi um processo que foi se desenvolvendo junto comigo. Quando eu comecei a pensar nela, ainda alisava o cabelo, ainda tinha muitos mais problemas de autoestima do que eu tenho hoje, e tinha dificuldade de aceitar os meus traços negros. Com o processo de estruturação da nossa identidade, que foi orgânico, junto ao público, fui entendo muita coisa que ainda era novo até pra mim.
Artur : Se a Batekoo cresceu, se o público aprendeu, acredito que todos nós que trabalhamos nesse projeto crescemos juntos com ele. A forma como eu me vestia no começo da Batekoo e hoje é distinta. Eu, particularmente, sou a única pessoa que trabalha na festa que não veio da favela, que não teve essa vivência. Para mim, foi um processo de aprendizagem, de contato com outras realidades, com outras vivências e com pessoas com outras histórias e origens; foi um processo de autoconhecimento, mas também de constante compreensão e reconhecimento dos privilégios que carrego. Assim como muitas pessoas do público, sou negro e gay, o que já me coloca em um abismo com pessoas brancas e heterossexuais, mas ainda há diversos abismos até entre nós.
Wesley: faz a Batekoo acontecer em SP
Renata Prado também fica no fervo paulistano
Juliana Andrade, ou Juju ZL, é atriz e dançarina oficial da Batekoo
Foto: Deu Zebraa
Veja mais: Batekoo, a primeira festa para gays, lésbicas, travestis e transexuais negros de São Paulo
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