Diversidade

Festivais feministas conectam e fortalecem protagonismo das mulheres pelo Brasil

07 • 03 • 2019 às 11:20
Atualizada em 11 • 03 • 2019 às 11:07
Gabriela Rassy
Gabriela Rassy   Redatora Jornalista enraizada na cultura, caçadora de tendências, arte e conexões no Brasil e no mundo. Especializada em jornalismo cultural, já passou pela Revista Bravo! e pelo Itaú Cultural até chegar ao Catraca Livre, onde foi responsável pelo conteúdo em agenda cultural de mais de 8 capitais brasileiras por 6 anos. Roteirizou vídeo cases para Rock In Rio Academy, HSM e Quero Passagem, neste último atuando ainda como produtora e apresentadora em guias turísticos. Há quase 3 anos dá luz às tendências e narrativas culturais feministas e rompedoras de fronteiras no Hypeness. Trabalha em formatos multimídia fazendo cobertura de festivais, como SXSW, Parada do Orgulho LGBT de SP, Rock In Rio e LoollaPalooza, além de produzir roteiros, reportagens e vídeos.

Festivais de música e arte acontecem o ano todo em todas as cidades do Brasil e do mundo. Mas quantas mulheres estão no line up? E mais: quantas estão no backstage, na produção, na técnica, na assessoria de imprensa? Por muitos anos, o mercado como um todo foi dominado pela presença masculina e a mulher ficando, quando em primeiro plano, limitada ao vocal de algumas bandas.

É uma alegria perceber que dos eventos aos coletivos, passando por selos musicais e prêmios estejam voltados completamente ao trabalho delas. E abraçando todas as áreas. Ainda que politicamente vemos os passos para trás mundo afora, sejam em discursos misóginos ou em promessas não cumpridas, hoje as mulheres estão ocupando cada vez mais os espaços e funções, sendo protagonistas reais de suas próprias histórias.

Em 2018, a fundação internacional Keychange lançou uma iniciativa pioneira no empoderamento feminino no futuro da música. A ideia é que, até 2020, os festivais tenham um equilíbrio de gênero no line up. No Brasil, os festivais Coquetel Molotov, Psicodália e MADA, além da SIM-SP (Semana Internacional de Música de São Paulo) montaram suas programações com 50% de atrações femininas.

Mais que cantoras

“De um modo geral tem melhorado, até porque acho que os festivais não querem mais passar vergonha (risos)”, diz Claudia Assef, criadora do prêmio WME – Women’s Music Event, ao lado de Monique Dardenne, e autora do livro “Todo DJ Já Sambou – A História do Disc-Jóquei no Brasil”. “A internet tem sido muito eficiente no sentido de expor festivais que deslizam na equidade de seus line-ups e isso tem feito com que se pense melhor antes de bookar artistas”, completa.

Claudia Assef e Monique Dardenne, idealizadoras do Women’s Music Event

Claudia Assef e Monique Dardenne, idealizadoras do Women’s Music Event

O Women’s Music Event é plataforma que atua em várias frentes com foco em aumentar o protagonismo da mulher na música. A WME Conference tem sua 3ª edição marcada para os dias 22 e 23 de março, com uma programação que vai reunir mais de 100 mulheres entre artistas e profissionais da música brasileira para falar sobre música, negócios e tecnologia. A premiação com o mesmo nome aconteceu em novembro e contemplou mulheres em 15 categorias, de melhor álbum a melhor produtora musical, passando por radialistas, diretoras de videoclipes, entre outras trabalhadoras da música.

WME Conference recebendo Aíla e Assucena

WME Conference recebendo Aíla e Assucena

Ainda assim, vendo como um todo, a participação feminina nos festivais de música ainda acontece de forma bem tímida. “Todos os festivais têm mais homens que mulheres. E quando tem mulheres, você tem a mulher cantando, mas a formação da banda tem mais homens”, diz Camila Garófalo, idealizadora do SÊLA, que é um festival, um selo musical e um canal de divulgação dos trabalhos femininos.

Ela comenta ainda os outros papéis da mulher na música, sem se limitar ao vocal. “A participação feminina se dá em diversas áreas, como instrumentistas, técnicas de som, iluminadoras, roadings, produtoras, assessoras de imprensa. Hoje em dia é muito limitada essa participação, em respeito a todas as etapas da cadeia produtiva da música. Por isso ações como a SÊLA, o WME, como diversos outros coletivos, marcas e iniciativas feministas são importantes na música ainda”, explica Garófalo. Toda ação da SÊLA é composta exclusivamente por mulheres em todas as funções.

Mostra SÊLA apresentando Laura Diaz e Maria Beraldo

Mostra SÊLA apresentando Laura Diaz e Maria Beraldo

A última ação do coletivo foi a coletânea SÊLA, que reuniu não só intérpretes e compositoras, mas também produtoras musicais. “É muito legal porque essa profissão na música é muito íntima. As pessoas conhecem poucas produtoras musicais, mas existem muitas”. Toda semana elas soltam sigles novos dentro da coletânea, com uma matéria no site Mulher na Música. “A cada single, a gente dá uma atenção especial, faz uma entrevista e vamos catalogando quem são as produtoras musicais que estão atuando no Brasil hoje”, conta.

Audição SÊLA na Casa Vulva por Marcela Guimarães

Audição SÊLA na Casa Vulva por Marcela Guimarães

Pr’além da música

As ações passam ainda do campo da música e abraçam outras áreas da arte. É o caso do festival M.A.N.A. – Mulher, Arte, Narrativas, Ativismo, criado pela artista visual Roberta Carvalho e pela cantora e compositora Aíla. A primeira edição aconteceu em 2017, em Belém, cidade natal das artistas, e reuniu artistas e produtoras culturais da música à poesia, do cinema às intervenções artísticas, todas focadas em debater a presença e o protagonismo da mulher nas artes.

Aíla e Roberta Carvalho, criadoras do M.A.N.A.

“O campo das artes, numa perspectiva da sociedade, está minado de um discurso e de um modo operandi machista. As questões que acontecem dentro dessa cadeia da produção de arte e cultura sofrem das mesmas questões que a gente na sociedade. Precisamos discutir sobre onde estão as mulheres”, provoca Roberta. Ela, que trabalha com arte e tecnologia, se valendo da fotografia e das projeções em grandes formatos, sente a exclusão mais gritante.

“Se a curadoria não tiver esse ponto de vista de como a sociedade exclui as mulheres, a gente vai continuar repetindo esse repertório. Não há como criar onde não existe espaço para o livre trânsito. Não tem como formar uma artista em arte e tecnologia se ela não experimentar”, diz a artista.

A ideia é que o festival seja itinerante e siga abrangendo todas as áreas. Por lá passaram shows como o de Aíla, com a turnê do disco “Em Cada Verso Um Contra Ataque”; mesas de discussão, com representantes como a filósofa e feminista negra Djamila Ribeiro; e oficinas, como a do Slam das Minas, com seu rap poético. Além disso, o festival deu vida ao CineMANA – Mostra Audiovisual Feminista, debatendo o empreendedorismo das mulheres nas artes, a relação das marcas com a música, o assédio na produção cultural, as mulheres na guitarrada, entre outros temas.

Criando redes

O festival M.A.N.A. surgiu pelo desejo de criar conexões e pontes com outras mulheres. E o resultado de uma semente plantada é muito claro. “As dezenas de mulheres que participaram, sem falar no público, estão atuando já mais fortalecidas”, lembra Roberta.

Na época, Aíla fez uma postagem nas redes sociais, que repercutiu muito, perguntando: guitarrada, onde estão as mulheres? A guitarrada é um ritmo típico do Pará, mas que até então só tinha referências de homens. Em 2017, no festival, nasceu a primeira banda feminina do estilo, chamada Guitarrada das Manas. “Era uma apresentação artística que surgiu como provocação a partir dessa postagem e hoje existe uma banda, gravando disco, passando em editais. O festival deu um pontapé neste projeto, a partir de um debate. Então veja como discutir é importante para a gente colocar isso na prática também”, conta Roberta Carvalho.

A amplificação das vozes e o reconhecimento são certamente alguns dos maiores impulsos tanto para a consolidação de trabalhos como para o desabrochar de mulheres em todas as áreas. “Com certeza esse movimento começa nos coletivos e nos eventos, pois é aí que ganhamos força e visibilidade”, diz Claudia Assef.

Nos eventos do WME, elas sentem que as artistas e também as profissionais das áreas técnicas dos bastidores em geral se sentem muito valorizadas e com suas vozes amplificadas. “É muito gratificante ver uma artista como a Daniela Mercury, por exemplo, querendo participar do WME, assim como as mais novas também. Sentimos que formamos um paredão mulheres vibrando nessa positividade, entendendo que o mercado vai melhor se todas estiverem unidas”, explica a idealizadora do evento.

Drik Barbosa, Karol Conka, Duda Beat e Preta Gil na premiação do WME

Drik Barbosa, Karol Conka, Duda Beat e Preta Gil na premiação do WME

Feminismo e igualdade

O fortalecimento é para as mulheres, mas nem por isso os homens precisam ser excluídos – aliás, longe disso. A batalha ganha até mais força quando eles se sentem parte dela. “Acreditamos que enquanto não houver equilíbrio, não só nesse mercado mas em todos, estaremos diante de um mercado doente, que não dá voz igual a todxs. Para equalizar essa balança precisamos da força e do entendimento de todos”, conclui Claudia Assef. Para ela, o feminismo ainda é entendido como um palavrão. “Muita gente ouve essa palavra e imagina um grupo de mulheres armadas, com absorvente na testa e peixeira na mão”, brinca Claudia.

Mas no final o temor ao feminismo não passa de falta de conhecimento – ou um medo ilusório, como caracteriza Camila Garófalo, de perder espaço: “Tá rolando uma onda feminista pesada e eu acho é pouco. As pessoas finalmente estão começando a entender que essa é uma demanda real e, tudo que vai ganhando força, tem oposição”. Roberta Carvalho concorda que tudo parte da falta de informação. “É uma questão de deseducação de uma cultura machista. Um processo que temos que debater todos os dias, com nossos amigos, com nossas crianças, para mudar essa perspectiva altamente destrutiva e até criminosa acerca da mulher”, acredita a artista visual.

O feminismo, afinal, é a igualdade entre os gênero. Qualquer que seja ele, em qualquer corpo. E é por esse movimento que vamos garantir a contratação de mulheres em todas as áreas do conhecimento. “É importante enxergar o feminismo como uma ferramenta libertadora; seria muito mais tranquilo se o fato de ser mulher fosse visto como algo normal, que fôssemos vistas como profissionais capazes de desempenhar qualquer função e não tivéssemos que ficar brigando por respeito, pra que não se achem no direito de nos assediar, pra que nos paguem salários iguais aos dos homens e pra que nos respeitem pelo nosso conhecimento e não porque somos mulheres, homens, ou qualquer que seja o gênero”, diz Claudia Assef.

Em 2018 foi criado na Suécia o primeiro festival voltado apenas para mulheres – da equipe ao público. O Statement aconteceu pela primeira vez em Gotemburgo, com entrada proibida para homens. O evento veio como resposta a uma série de atos de violência que aconteceram no Bravalla, até então o mais importante festival de música da Suécia. Quatro estupros e 23 agressões sexuais aconteceram no festival em um país que é considerado um dos países mais pratica o respeito à igualdade de gênero. O resultado foi um festival lindo e um castigo aos homens, até que aprendam a se comportar.

Primeira edição do Statement Festival

Primeira edição do Statement Festival

“Acho interessante quando tem um evento que não pode entrar homem e algumas pessoas ficam com raiva, chamando de segregador. Só que é uma oportunidade histórica dos homens entenderem na prática o que é não poder pertencer a um grupo, movimento ou situação. Para que eles entendam os privilégios e vejam que pela primeira vez na vida não podem participar de algo. É aprender na prática”, acredita Camila.

Eu acho é pouco

Além da Sêla, que nasceu em São Paulo, e do M.A.N.A., no Pará, e do Women’s Music Event, muitos festivais e coletivos pelo Brasil reúnem e fortalecem trabalhos de mulheres. O Sonora Soma (que agora deve mudar de nome), atua na área da música com festival e ações ao longo do ano. Ainda dentro da música, acontecem o Festival Hard Grrrls, o Maria Bonita Fest e o Lugar Delas Festival.

Nas artes visuais, o Efemmera faz a integração entre mulheres no mercado da street art. O papel da rede, além de promover encontros entre artistas estabelecidas e em ascensão, é também preparar as participantes para oportunidades profissionais e empoderá-las por meio do seu próprio trabalho. Nesse sentido já aconteceu também o FEME – Festival Mulheres no Graffiti, no Espírito Santo.

Já na área do cinema, o Festival Tudo Sobre Mulheres divulga e premia as produções femininas. Com data marcada para setembro de 2019, a 7ª edição do festival acontece mais uma vez na Chapada dos Guimarães, no Mato Grosso. Além da exibição de obras audiovisuais que abordem a questão feminina, o festival também oferece cursos e oficinas, espetáculo de teatro, shows, lançamento de livros, roda de conversa, feira de artesanato, espetáculos de dança e exposição de artistas locais.

Fica aqui então o convite a conhecer e se conectar com tantos trabalhos lindos e sair do ciclo vicioso que é a contratação ou a referência só de homens para os mais variados trabalhos. E mais que isso, o convite para fazer junto, para transformar. Não é um caminho fácil, mas quem disse que o resultado não será ainda mais gostoso? Vale enaltecer o trabalho das manas, vale criar novos coletivos e festivais e vale ainda valorizar a diversidade. Somos cis e trans, héteros, lésbicas e bis. Somos potentes e capazes. E isso é só o começo.

Publicidade

Fotos:
Claudia e Monique por VtaoTakayama
Aíla e Roberta Carvalho por Julia Rodrigues
Mostra SÊLA por Sofia Colucci
Audição SÊLA e WME Conference por Marcela Guimarães
Guitarrada das Manas por Vitória Leona


Canais Especiais Hypeness