Pedro Drable - 22/05/2019 às 08:15 | Atualizada em 05/09/2019 às 10:41
Quem acompanha histórias de adoção na internet sabe que a maioria dos resgates começa de maneira muito similar: com animais em situação de risco e um humano disposto a salvá-los. Só que alguns resgates trazem surpresas maiores que outros, e essa talvez seja a história de adoção mais curiosa que você já leu.
Antes de contar essa história, um aviso: talvez aqueles que não se sintam confortáveis com palavras “grosseiras” e um pouco de escatologia devessem ler outra coluna. Essa aqui sobre animais em apartamentos pequenos, por exemplo.
Porque na entrevista a seguir, vamos falar de uma cachorra muito diferente.
Afinal, essa é a história da Vitória Merdinha: a cachorra que não tem fiofó.
Merdinha é uma cachorra resgatada da rua pela Fabíola Ladeira, uma protetora de gatos que soube da história de uma cachorrinha que corria risco de vida e não deixou sua inclinação por felinos ficar no caminho de resgatar uma vida. Hoje, Merdinha vive uma vida confortável com seus irmãos gatinhos, e distribui sorrisos pela rua e pelo feed da sua página no Instagram.
Para descobrir os detalhes da história da Merdinha, conversamos com sua tutora e salvadora, a Fabiola. A entrevista que você acompanha a seguir.
Precisamos entender essa história do início. Como a Merdinha surgiu na sua vida?
Eu e a minha mãe somos protetora de animais há cerca de 15 anos. Nós resgatamos muitos animais, mas a grande maioria sempre foram gatos, pois sempre tivemos gatos na nossas vidas desde pequenas, tanto ela, quanto eu. Temos um blog para divulgar doações, e nesse blog tinha nosso telefone para contato.
Uma moça nos ligou pedindo ajuda pois tinha pego um filhote na poça de lama após uma tempestade, só que a cachorrinha não estava bem, estava chorando de dor, e ela não tinha condições de levar no veterinário. Então falamos para ela trazer até nós, pagamos o transporte, e ela veio com a Merdinha numa bolsa de mão, de tão pequena que ela era.
Quando você descobriu que ela não tinha ânus? (e qual é o nome correto dessa condição)
A moça já havia desconfiado que ela não tinha ânus, pois percebeu que ela não fazia cocô devidamente, somente umas pequenas gotas, Só percebemos quando ligamos para uma amiga, a Dr. Flavia Quadros que é veterinária (que também fez a cirurgia dela) para nos ajudar e ela informou sobre a condição.
O nome correto é atresia anal, quando há uma má formação durante o período de gestação. Não é uma doença genética, mas um erro de formação da parte traseira do corpo, e pode ocorrer em qualquer mamífero.
Existem vários níveis de atresia anal, do mais simples, onde há apenas uma membrana que fecha o ânus, até casos mais complicados, como o da Merdinha.
Ela passou por muitas cirurgias para contornar a má formação?
A atresia anal dela é bem séria. Ela não tem o ânus, nem o reto, nem a porção final do intestino. Ela nasceu sem o rabo, com atrofiamento de bacia, problemas na patela e com as últimas vértebras fundidas, quase ficando paraplégica.
A primeira cirurgia foi feita no mesmo dia em que ela chegou na nossas vidas, e ela estava com risco iminente de morte pois além das infecções, o intestino estava dilatado de tantas fezes acumuladas. A cirurgia emergencial foi feita para tentar criar uma passagem. Nesse tipo de caso de atresia anal muitos animais não costumam a sobreviver à cirurgia, pois é extremamente invasiva e o animal é muito novo e está debilitado.
O Dr. Leonardo Maciel que fez essa cirurgia nos avisou que era um caso delicado e que as chances de sobrevivência eram mínimas, mas quando vimos que ela sobreviveu as primeiras 12 horas ficamos mais otimistas.
Mas ela ainda não conseguia evacuar e continuava com muita dor devido às cólicas. Ela fez uma segunda cirurgia (cerca de 15 dias após a primeira) para aumentar a passagem, mas a bacia dela era atrofiada e não dava espaço para uma abertura maior.
A única maneira de resolver era através de uma cirurgia de colostomia (quase 40 dias depois da primeira) , onde se faz uma passagem diretamente na barriga. Uma cirurgia delicada e extremamente dolorosa.
Após a cirurgia ela teve parada respiratória e quase morreu, passou os primeiros dias com dor, mas a colostomia resolveu a retenção das fezes dela. Depois de 4 dias internada ela finalmente teve alta e veio para a minha casa. E como é a saúde dela hoje em relação a isso?
Eu brinco que a capacidade de produção e evacuação dela agora é no máximo! Então o problema meio que mudou de lado, se antes ela retia as fezes agora ela não tem controle da saída, então o cocô sai constantemente, o que fez ela precisar de fraldas. As infecções foram tratadas e a alimentação dela pode ser como a de todo cachorro.
Fale mais sobre o nome “Vitória Merdinha”. Como ela ganhou esse nome?
O nome ‘Vitória’ veio no trajeto da nossa casa até a clínica onde iria ocorrer a primeira cirurgia dela, eu e minha mãe conversávamos sobre um nome para colocar na ficha, e pensamos que ela precisava de um nome para trazer “sorte”. E veio a ideia de Vitória.
A Merdinha já surgiu com uma amiga que gosta de fazer piadas, e que disse que o nome deveria ser ‘merda’, porque todos os problemas dela era por causa disso. Todo mundo riu, começou a falar ‘Merdinha’ de brincadeira, mas acabou que realmente ficou.
Você já recebeu comentários negativos sobre o nome “Merdinha”? Como você lida com isso?
Ah, eu sempre recebi, não só no Instagram. Eu já fui xingada na rua por pessoas que me perguntavam o nome dela. Eu não me importo com a opinião de terceiros, e se a pessoa vem com educação eu respondo com educação e explico o nome, mas se vem com grosseria e agressividade eu ignoro.
Recentemente, parece que houve um ataque coordenado no Instagram dela. Recebi mais de 15 mensagens somente em um dia, algumas bem agressivas. Alguns amigos vieram ajudar na explicação, e pelo menos uma pessoa se desculpou pelas atitudes erradas e hoje é uma fã da cachorra. Mas é realmente muito estranho ser xingada por causa de um nome que resolvi colocar em um animal.
Redes sociais fazem as pessoas perderem o filtro da empatia, que é necessário em todas as relações humanas, então eu me poupo de muita coisa apenas ignorando os comentários negativos.
Quais são os cuidados especiais que ela tem com saúde ou alimentação?
Como uma criança que usa fraldas, ela tem muitas assaduras na região da colostomia, e por isso eu preciso fazer os mesmo cuidados que fazem em um bebê que usa fraldas, a limpeza tem de ser bem delicada e bem feita, passar pomada contra assadura constantemente, e fazer várias trocas de fraldas por dia.
Ela não pode abusar muito na alimentação, pois se as fezes mudam a consistência a assadura é maior e ela sente mais dor. Então sempre tento ficar de olho no que ela come.
Ela faz o acompanhamento veterinário para ver se a colostomia está bem, se tem risco de fechar, e a saúde intestinal. Ambos estão bem. Infelizmente, como a bacia dela não cresceu o suficiente para que as fezes pudessem passar, ela terá a colostomia para sempre.
Recentemente, ela foi diagnosticada com leishmaniose, Belo Horizonte é uma cidade com alta incidência da doença, fiquei bem triste, mas começamos o tratamento e está se mostrando efetivo!
E os custos para cuidar dela são muito grandes?
O maior custo tem sido as fraldas. São cerca de 200 fraldas por mês. Infelizmente a fralda ecológica não deu certo com as fibras de algodão ficando em contato com a assadura ela realmente sentiu mais incômodo, e tivemos que optar pelas descartáveis.
Abrimos um sistema de apadrinhamento da Merdinha no site Apoia.se, em que várias pessoas me ajudam nos custos da fralda e do veterinário dela, além da lojinha onde vendo as canecas e adesivos dela para conseguir fundos para pagar os remédios e o tratamento da leishmaniose. Ela precisa estar continuamente indo ao veterinário para avaliação de saúde e isso também gera gastos, tanto que abri uma poupança só para colocar o dinheiro que será gasto com ela.
Como outros animais reagem à Merdinha? E como ela lida com eles?
Eu sempre tive gatos, e quando a Merdinha chegou ela imediatamente adorou todos e queria brincar e interagir com eles. Como eu estava dando lar temporário para filhotes de gatos abandonados na época que peguei a Merdinha, todos se deram bem e brincaram bastante. Foi ótimo para a Merdinha acostumar. Meus gatos mais velhos não interagem muito com ela, mas gostam da companhia dela para dormir. Eles nunca brigaram, só rola uma troca de patada quando a Merdinha tenta roubar a comida dos gatos.
Quando o assunto é ficar no meu colo, todos conseguem fazer isso com certa paciência. A Merdinha sempre foi muito calma.
O que você aprendeu com a sua experiência como tutora da Merdinha?
A Merdinha foi efetivamente a minha primeira cachorra, já havia resgatado cães antes, mas nunca ficava com eles mais de um mês. Eu nunca fui uma #timecachorro, sempre fui gateira assumida e apaixonada.
Eu tive de aprender tudo, como cachorro se comporta, como ler todos os sinais e deles, até a maneira correta de segurar. E ainda com a condição dela eu tive de adaptar a minha vida e o meu apartamento. Mas tem muita coisa boa. Os passeios me fizeram conhecer meus vizinhos e eu nunca fico sem assunto com ninguém, pois se eu falo que tenho um cachorro que nasceu sem o ânus é conversa para horas com as pessoas.
Mas o mais importante que aprendi é que os animais lutam muito para sobreviver, e ela queria uma chance. Poderíamos ter sacrificado ela no primeiro dia, mas entendemos que todos os animais merecem uma chance de lutar e tentamos dar a ela essas condições de luta. Ela com as probabilidades bem baixas conseguiu vencer todas.
Uma das coisas que mais encanta na forma como você conduz a sua relação com a Merdinha é o bom humor, mesmo com todas as dificuldades que ela passou. É um tipo de filosofia de vida? Ou é inspirado nela? Um poucos dos dois. Eu sempre falava que se eu tivesse um cachorro eu iria colocar ele nas fantasias mais ridículas e tirar muito sarro, pois os cachorros são os animais mais felizes do mundo, e quem leva cachorro muito a sério perde essa parte maravilhosa deles, que é o quão bobos eles são. Bobos no sentido de terem aquela felicidade simples estampada na cara.
Com a Merdinha a ideia é essa, pegar essa cachorra que tem a condição mais estranha e engraçada, o nome mais engraçado ainda e tirar sarro de tudo. Porque ela já sentiu muita dor na vida, mas é passado, ela está bem e está feliz. Ela quer ser amada, ganhar carinho e passear. Acho a maior bobagem perdemos o nosso tempo tentando procurar uma profundidade na vida de um cachorro que só quer simplicidade.
Como você entende o pensamento da nossa sociedade em relação a cachorros com deficiência? Estamos avançando?
Por parte dos veterinários sim, nenhum me recomendou a eutanásia, todos falaram que era caso cirúrgico de alto risco, mas nenhum falou para eu desistir. Isso já mostra que os especialistas estão dispostos a lutar pelos casos mais complicados.
A população ainda precisa abrir um pouco mais a cabeça, muita gente que me perguntava a história dizia que eu deveria ter eutanasiado, mas a maioria fica com sentimento de pena e de dó, o que para mim pessoalmente é pior.
As pessoas não enxergam que ela está bem e feliz, elas enxergam o problema apenas e se apegam à ele. A Merdinha não deixou de ser um cachorro feliz e tem as mesmas atitudes de um cachorro normal, ela ainda brinca, morde, late, faz bagunça como um cachorro normal. Ela não perde um segundo da vida dela com pena de si mesma.
Qual é o seu objetivo ao contar a história da Merdinha no Instagram e por aqui?
O principal objetivo é fazer com que as pessoas entendam que vale a pena lutar pelos casos mais difíceis dos animais resgatados. Não considere a eutanásia a não ser que realmente não há saída. Dê uma chance para eles lutarem e mostrarem a sua vontade de viver.
Mas também mostrar que animais deficientes tem uma vida feliz, e que existem mudanças que trazem coisas boas nas nossas vidas. Não nos prender na dor, e na pena. Ver além da doença.
Nas horas boas ou nas horas ruins. Na caminhada em um dia de sol ou na cama curtindo o som da chuva do lado de fora. Uma coisa é certa: nossos dogs sempre estarão ao nosso lado.
Pensando sempre no melhor para você e seu dog, o Hypeness e a Güd querem entregar aquele tipo de conteúdo que enche o coração de fofura e paixão pelo seu melhor amigo.
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Pedro Drable é publicitário e engajado na causa de animais de rua desde que adotou uma cadelinha chamada Dory. A história de superação dessa cadela sobrevivente de cinomose e seu dia a dia cheio de humor podem ser acompanhados pelo instagram @dorydalata. No mesmo Instagram, o publicitário lançou a Dalata, uma marca para amantes de pets que reverte um terço dos lucros para ajudar abrigos, protetores independentes e animais em risco.