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Muito se fala sobre o feminismo e questões de gênero. Porém, numa rápida pesquisa por verbetes femininos nos dicionários, o principal meio de compreensão da língua portuguesa contemporânea revela atrasos e significados inconvenientes: “mulher” e “garota” são colocadas como “cortesã“, “rabo de saia” e “aquela com quem o homem tem uma relação estável“. Mais do que meras palavras, os termos machistas, sexistas e conservadores são parte de um ciclo que vai do seio social para as páginas dos livros, impactando diretamente na forma como o mundo se comporta.
O vocabulário português e latino ganhou sua primeira publicação no século 18, em Lisboa. Conhecido por muitos brasileiros, o dicionário Aurélio foi lançado em 1975 e permanece nas prateleiras das livrarias até hoje, com cerca de 400 mil palavras em suas páginas. Em 2010 foi publicada a quinta e atual edição.
Outros surgiram no mercado, como o Houaiss, em 2001 e o Michaelis, em 1950. Neste último podemos encontrar, inclusive na versão digital, a definição de verbetes femininos bem ultrapassada e constrangedora. Ao buscar por “mulher” encontramos, entre outras coisas:
-Racha/Rachada;
– Adolescente do sexo feminino após sua primeira menstruação, quando passa a ser capaz de conceber, distinguindo-se, assim, da menina;
– Pessoa do sexo feminino, de classe social menos favorecida, em oposição a senhora;
– Aquela com quem o homem tem relação estável, mas sem vínculo legal; amante, concubina;
– Pessoa do sexo feminino, após sua primeira relação sexual: Tornou-se mulher ainda na adolescência;
– Homem efeminado que tem modos, gostos e atitudes considerados femininos;
– Indivíduo homossexual que em uma relação sexual tem atuação passiva.
No Aurélio, “garota” aparece também como “namorada”. Embora o termo tenha sido perpetuado em frases como “ela é minha garota”, tal sentido da palavra talvez fosse conivente com a Idade Média, no qual menores de 18 anos eram forçadas a se casar, ou quando o homem tenta diminuir a mulher ao termo mais infantil. Em pleno 2019, é totalmente inadequado sugerir tais coisas num livro ou página de internet que se coloca como o principal meio de compreensão da língua portuguesa.
Na busca por “homem” no Michaelis, consta uma série de atributos sociais, muito mais pomposos e avançados do que os da mulher, além de outros significados simplesmente desairosos:
-Homem que já chegou à idade adulta; homem-feito;
– A espécie humana; a humanidade;
– Homem dotado de atributos considerados másculos, como coragem, determinação, força física, vigor sexual etc.; macho;
– Indivíduo que goza da confiança de alguém;
– Indivíduo que mantém uma relação afetiva com uma prostituta e a explora financeiramente;
– Indivíduo que faz parte de um exército ou de uma organização militar.
Apesar de não estar diretamente ligada à lexicografia – tarefa científica de elaboração de dicionário - , a doutora em linguística e professora de análise de discurso da UnB (Universidade de Brasília), Viviane Cristina Vieira, faz uma investigação das questões mais políticas envolvendo a linguagem. “Meu estudo se baseia em como as representações sociais, feitas por meio da linguagem, têm o poder de moldar as nossas crenças, identidades, valores e maneiras de agir”, explicou a docente, que atualmente trabalha com a formação inicial de professores.
E o que explicaria o uso de termos tão defasados? Segundo ela, os verbetes são feitos majoritariamente com base em textos culturalmente consolidados, como obras literárias, canônicas e jornais urbanos. Por meio de um trabalho minucioso de levantamento de significados, através de aproximadamente 20 mil ocorrências, se constroem as definições dos dicionários.
Porém, Viviane recorda que a forma de construção da realidade está ligada com o uso da linguagem. “Uma classe, uma elite econômica, cultural, simbólica, se expressa por meio das palavras e seus sentidos. O que vemos hoje nos dicionários brasileiros não representa minorias; é justamente a materialização de um machismo, de uma visão heteropatriarcal, binária, conservadora, que é a base dessa nossa cultura, utilizada como norma de referência não apenas gramatical”.
Para confirmar o quanto os contextos sociais atingem o sentido das palavras, a docente nos convida a uma reflexão simples sobre o que é “uma mulher pública” e “um homem público” ao olhos da população. Linguisticamente falando, ambos seriam duas representações da mesma construção, uma no feminino e outra no masculino. Porém, na conotação de uso social e na divisão sexual dos trabalhos, várias vezes aparece a ocorrência de homem público como político e mulher pública como prostituta. “Isso não é fácil de mudar porque existem interesses comerciais, uma elite hegemônica que por meio da grande mídia e, hoje, das redes sociais, dissemina os significados e seus preconceitos em relação à tudo o que é feminino”.
Historicamente falando, os sentidos que são construídos de forma negativa partem da mulher, assim como dos negros e da população LGBTQI+. A partir daí se impõem as fronteiras de um homem não poder expor suas emoções, pois este seria considerado “feminino”, por exemplo.
Existe um esforço histórico para manter essa postura. A partir do momento em que mulheres são colocadas como uma maioria ameaçadora, mecanismos de controle político, social e histórico entram em cena para tentar, de todas as formas, enclausurá-las no espaço privado, evitar sua participação no espaço público, etc. Assim a grande mídia propaga, de maneiras contestáveis, uma certa definição do que pertence ao homem e o que é da mulher, para sustentar a base do sistema capitalista, que é o heteropatriarcado.
Ou seja, causa e efeito estão refletidas nos dicionários. O mesmo acontece nos livros didáticos e materiais de apoio: a mulher ainda é representada de maneira conservadora. “Tenho feito um estudo que revela isso por meio de textos verbais ou imagens, hoje tão significativas. A figura da mulher é sempre romantizada, ligada às tarefas domésticas. E isso tem impacto desde a infância, porque essas representações vão sendo internalizadas, repetidas, legitimadas“, apontou a acadêmica.
Todo mundo sabe que as palavras têm um peso. Mas após a análise aqui colocada, fica claro que para as mulheres, as palavras são mais do que um peso, são um fardo, arrastado ao longo dos séculos. O que se conclui é que as modificações no “pai dos burros” não são uma mera solicitação. As reivindicações são legítimas e necessárias para a evolução social. “A mudança do sentido, significado e peso das palavras caminha junto com uma mudança de estrutura opressora e de pensamento dessa sociedade tão iludida, tão fundada num falseamento da realidade, como Paulo Freire bem alertou”, pontuou Viviane.
Apesar de o dicionário não mudar de uma hora para outra, alguns pequenos passos vêm sendo dados para que a literatura, o ensino e tantas outras coisas fundamentais da vida passem a abarcar sentidos mais dignos e próximos da atual realidade.
A professora de linguística conta que atualmente tem incentivado projetos que levam, por exemplo, literatura feita por mulheres negras para escolas do ensino público, se aproximando de alunos da periferia com o intuito de começar a quebrar o preconceito e as referências hegemonizadas. “Romper com a bibliografia padrão, basicamente escrita por homens, héteros, predominantemente europeus e de classe média, entra na luta contra a legitimação de várias violências, situações de assimetria de poder e desigualdade”.
Uma petição online publicada pelo paulista Eduardo Santarelo em 2015 no site Change.org pedia alteração na definição de “casamento” no dicionário Michaelis. A exigência era mínima: trocar “união legítima entre homem e mulher” por “união legítima entre pessoas”. Com mais de 3 mil assinaturas no abaixo-assinado, o pedido foi acatado pela editora Melhoramentos.
No ano seguinte, o AfroReggae, junto com a Artplan, propõe mais valorização e respeito por parte dos dicionários para as pessoas transgêneros. Contando com auxílio lexicógrafa Vera Villar, criaram uma plataforma, o Dicionário de Gêneros e Verbetes, com termos que definem palavras como “andrógino”, “agênero” e “transgeneridade”. Infelizmente o projeto não está mais na internet.
Outro exemplo vem lá da terra-mãe da nossa língua. Em 2018, as portuguesas começaram a notar o quanto os dicionários do país também estavam atrasados. O canal Fox Life e o dicionário Priberam se uniram para lançar um desafio que iria alterar os significados da palavra “mulher”, que assim como aqui, era colocada apenas de formas pejorativas ou relacionadas ao seu estado civil. De forma mais justa e abrangente, os novos dicionários – com outras 840 palavras novas – começaram a circular em Portugal.
Recentemente, algo semelhante foi criado no Brasil. O movimento #RedefinaGarota #RedefinaMulher tem como objetivo atingir lexicógrafos do mundo inteiro para que amplie o vocabulário. Uma petição online foi elaborada para pedir alteração nas definições pejorativas de “mulher” e “garota” nos dicionários e precisa de 2 mil assinaturas. A pauta é sustentada pela Verbetes Femininos, uma plataforma de conteúdo gerado por apoiadoras e divulgação de eventos relacionados ao tema.
Como parte das ações globais, a marca Converse abraçou a causa por meio das campanhas “Love the Progress” e “Toda História é Verdade”, que entre outras ações, convida o público feminino para contar histórias de superação, reflexão e empoderamento, com o objetivo de definir o gênero em suas próprias palavras e inspirar outras ao longo do caminho. No Brasil, contatou mais de 100 mulheres de diversas áreas e regiões para criar uma rede de apoio.
Junto à loja Void, lançou neste ano a segunda edição do zine Sola, que traz novas definições dos verbetes femininos, com a participação das cantoras Liniker, Mariana Aydar e MC Soffia; da Youtuber e empresária Alexandra Gurgel; da grafiteira, ilustradora e tatuadora Luna Bastos; da jornalista Julia Alves e da zineira Bianca Muto.
Nas páginas do zine, elas compartilham na publicação suas próprias ideias sobre o que é “mulher” e “garota” nos dias atuais. Mulher trans e negra, Liniker reforça que os papéis femininos ainda são pautados por muitos clichês. “De gerações em gerações, a gente continua tendo que bloquear e banir nosso corpo de liberdade por causa do olhar do outro”.
Ao Hypeness, Luna contou que não tinha notado os termos antiquados até o momento, embora o machismo esteja muito presente na sua atuação como grafiteira, na qual vez ou outra acaba ouvindo comparações com bons trabalhos de homens do meio artístico. “Embora sempre tenha sofrido com as imposições sobre o tipo de mulher que eu deveria ser, nunca tinha me atentado ao dicionário. Considero que a proposta do zine foi importante pois gerou reflexão e possibilidade de ressignificação sobre o que é ser mulher e sobre os espaços que podemos ocupar”.
Obviamente, as demandas femininas não param por aí, mas acredite: elas estão sim ligadas à forma como a sociedade enxerga a mulher. Não faltam projetos, lutas e campanhas com o intuito de libertá-las de várias definições, papéis e limitações que lhes foram concebidos ou forçados ao longo dos séculos. “Como mulher negra, percebo que o mais urgente tem sido o próprio direito à vida, já o número de casos de feminicídio têm aumentado consideravelmente, e o direito à liberdade para ser quem somos“, pontuou Luna.
Enquanto os dicionários colaborarem com a ideia de que a mulher pertence a alguém, seja como esposa, amante ou prostituta, a liberdade sempre vai lhe custar caro. Ser dona e autora de sua própria história está a milhas distância de ser um mero discurso. O despertar a consciência coletiva pode não começar num livro de palavras, mas se a princípio todo mundo tiver na ponta da língua que “mulher” e “garota” são muito mais do que um substantivo feminino ou estado civil, já é uma pequena grande vitória rumo ao avanço da espécie.
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Fotos: banco de imagens/pexels.com/Verbetes Femininos
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