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A vida de João Gilberto deve ser celebrada, pois sua morte leva embora algo de imenso sobre o Brasil – e nos deixa como herança e presente a possibilidade desse Brasil gigante iluminado pela arte de João. Com sua partida, também se vai a régua fundamental da música e mesmo da cultura nacional: João Gilberto é nossa unidade essencial, o “um”, a medida de contagem, o paradigma qualitativo e revolucionário, o ponto alto daquilo que a música brasileira é e pode ser.
© Michael Ochs/Getty Images
Se esperamos que um artista nos eleve e nos mostre o além que a arte pode nos revelar, morreu o maior artista que um país pode ter. João Gilberto é não só um dos maiores artistas da história do Brasil – é também um dos maiores do mundo. Num cenário em que agora provavelmente Paul McCartney e Bob Dylan reinam solitários, João era um daqueles emblemas do século 20 – de quando a arte e um artista pareciam maiores do que a própria vida, capazes de nos oferecer sentido e identidade como uma verdadeira mitologia nacional. Nossa vida ganhou (mais e enfim) sentido com a música de João, mesmo para quem torcia o nariz ou desconhecia sua qualidade.
Pois se a música popular é o coração pulsante do que é ser brasileiro – o elemento fundamental, como um combustível cultural determinante, a matéria prima que forja quem é daqui -, poucas outras músicas foram tão importantes para fomentar essa identidade quanto a de João, seu samba, seu som. João Gilberto está junto de outros faróis como Dorival Caymmi, Pixinguinha e Gonzagão como aqueles que, com as mãos, ouvidos e bocas, inventaram o Brasil em que hoje vivemos – e que hoje ouvimos. Não interessa qual é objetivamente o gosto musical do leitor: ele também foi forjado por João. O samba, margem do Brasil, refinado e reprocessado por João, se encontrava com o jazz negro, margem dos EUA, para, no final dos anos 1950, amarrando essas duas pontas, transformar a música popular, centro do coração do planeta, através do que ficou conhecido como Bossa Nova.
© Michael Ochs/Getty Images
Não é preciso perder muito tempo recontando a história do inventor da bossa nova, que saiu pobre de Juazeiro, na Bahia, como um Mefistófeles que trazia a verdade sonora do seu país em sua mão direita e na elegância de sua voz, para conquistar o mundo – partindo dos discos “Canção do Amor Demais”, de Elizete Cardoso, e “Chega de Saudade”, dele próprio, até o histórico show no Carnegie Hall, em Nova York, em 1962 – e daí para o resto da vida e do planeta.
Enquanto traçava essa história, nascia a perfeição fonográfica de discos como “O Amor, o Sorriso e a Flor” (1960), “João Gilberto” (1961), além das obras-primas “Getz/Gilberto” (1964) e “Amoroso” (1977), entre tantos outros. Se chegamos a um destino reluzente para a música brasileira, esse caminho foi em muito forjado e iluminado por João e seu violão – capaz de significar, em seu jeito de cantar e tocar o samba, a alegria, as tristezas, a luta, a simplicidade, a loucura e a complexidade de cá.
João e Stan Getz tocando em Nova York no início dos anos 70 © Getty Images
Em “Pra Ninguém”, Caetano Veloso – um dos aprendizes mais diletos de João, que se tornou também um dos maiores artistas da história do país a partir do perpétuo impulso original de “Chega de Saudade” – elenca a diversidade total da música brasileira (de Nana Caymmi a Max Cavalera, de Orlando Silva à Elba Ramalho, de Tim Maia a Carmen Miranda) pra ao fim dizer que “melhor do que isso só mesmo o silêncio” e “melhor do que o silêncio só João”.
Além de posicionar João Gilberto no topo de tudo que já foi produzido em música popular no Brasil, e da tocante metáfora de coloca-lo como “melhor” do que o silêncio, Caetano nos lembra que, apesar de efetivamente sussurrante, a música de João foi ruidosamente revolucionária.
“Chega de Saudade” foi um disco provocador, de vanguarda, estranho e, ao mesmo tempo, mais claro e certo do que qualquer outro, que utilizou o minimalismo e a coloquialidade do canto joãogilbertiano para atualizar o Brasil, em uma juventude nova e moderna – que deixava qualquer saudade para trás, imediatamente. Caetano, Chico, Gil, Jorge Ben, Djavan, João Bosco e tantos outros só puderam se tornar os grandes artistas que são a partir da fundação que foi João.
A mais moderna música brasileira estava enfim sintetizada – reunindo ritmo, melodia, estilo e estética, sob a influência de certo jazz mas também do samba, reposicionando o Brasil não ensimesmado em sua própria regionalidade, mas sim no centro do cenário internacional.
O que João Gilberto significou para aquela geração que era jovem no final dos anos 1950 e início dos anos 1960 no Brasil poucos outros artistas foram capazes de alcançar – possivelmente somente Elvis operou transformação semiótica, sonora, social, cultural e comportamental equivalente, para os estadunidenses à mesma época, colocando “Heartbreak Hotel” como uma espécie de “Chega de Saudade” do país ao norte.
Capa do disco Chega de Saudade, estreia fonográfica de João
Elvis e João, primordialmente intérpretes, iluminaram pelo jeito de tocar e cantar um novo sentido para aquelas gerações – mas, se a revolução de Elvis, que teve início em 1956, durou efetivamente pouco mais de 4 anos (quando voltou de sua temporada no exército, em 1960, o artista já não era – e nunca mais seria – o rei do rock que vitalizou o início da revolução sexual nos EUA do fim dos anos 1950), João manteve do princípio e até o fim de sua vida acesa a chama de sua revolução. Desde o show O Encontro, ou da apresentação no Carnegie Hall até a última turnê, ver uma apresentação de João era assistir a um recital perfeito, da excelência máxima que a música popular pode alcançar.
João sempre foi um furioso sopro de elegância, ainda mais contundente hoje, em um Brasil violento, bruto, tacanho – um país ao contrário, que criminaliza as expressões populares e sua própria excelência essencial. Pois João exigia excelência em tudo que fazia: foi assim que produziu alguns dos melhores discos da história, e que realizou essa síntese nacional através da assombrosa relação rítmica e harmônica entre seu violão, sua voz e as temáticas das canções, com a força e a originalidade de quem inventa uma linguagem. João foi o maior por saber que o Brasil era o maior – e por exigir do Brasil e para o Brasil, a partir de si, nada menos que o máximo. Assim ele conquistou o mundo: sem jamais sair da música brasileira, mas colocando-a como farol internacional e atemporal.
“João Gilberto foi o maior artista com que minha alma entrou em contato. Antes de completar 18 anos, aprendi com ele tudo sobre o que eu já conhecia e como conhecer tudo o que estivesse por surgir” escreveu Caetano Veloso em suas redes sociais, significando melhor que qualquer outro em palavras a imensidão de João – e o silêncio efetivo que surge com sua morte.
“Com sua voz e seu violão, ele refez a função da fala e a história do instrumento. Pôs em perspectiva todos os livros que eu já tinha lido, todos os poemas, todos os quadros, todos os filmes que eu já tinha visto. Não apenas todas as canções que ouvi. E foi com essa lente, esse filtro, esse sistema sonoro que eu passei a ler, ver e ouvir. Aos 88 anos, com aspecto de quem não viveria mais muito tempo, João morrer é acontecimento assustador. Orlando Silva, Ciro Monteiro, Jackson do Pandeiro, Ary, Caymmi, Wilson Batista e Geraldo Pereira não teriam sido o que são não fosse por João Gilberto. Tampouco Lyra, Menescal e Tom Jobim. Ou os que vieram depois. E os que virão. O Hino Nacional não seria o mesmo. O mundo não existiria. Sobretudo não existiria para o Brasil. Que era uma região ensimesmada e descrente da vida real fora de suas fronteiras. João furou a casca. O samba não seria samba sem Beth Carvalho cantando ‘Chega de Saudade’. A música não seria música sem a teimosia de João. Ele foi uma iluminação mística. Nenhum aspecto do mundo que ele sempre tocou tão rente pode ameaçar a grandeza da verdade de sua arte. E isso era sua pessoa. É sua pessoa, em todos os sons gravados em matéria ou na minha memória”, escreveu Caetano, repleto de saudades do Brasil.
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