Estilo

Michele Simões: ‘As pessoas com deficiência precisam se enxergar e ser enxergadas pela moda’

11 • 07 • 2019 às 18:24
Atualizada em 23 • 09 • 2019 às 20:55
Brunella Nunes
Brunella Nunes Jornalista por completo e absoluto amor a causa, Brunella vive em São Paulo, essa cidade louca que é palco de boa parte de suas histórias. Tem paixão e formação em artes, além de se interessar por ciência, tecnologia, sustentabilidade e outras cositas más. Escreve sobre inovação, cultura, viagem, comportamento e o que mais der na telha.

A estilista e consultora de moda Michele Simões não permite que a cadeira de rodas seja um empecilho na sua vida. Na verdade, a inclui em todas esferas da vida, e mais: quer que outras pessoas com deficiência se empoderem e sejam vistas pelo mercado fashion. Com muita autoconfiança e looks maravilhosos, a criadora do projeto Meu Corpo é Real mostra que ser cadeirante está longe de ser o que a define como mulher.

Um acidente de carro em 2006 resultou em fraturas na coluna, na altura das vértebras, no esterno e na costela. Com a lesão medular, a moça de 1,70 metros de altura, pele branca e cabelos lisos, até então totalmente dentro do padrão de beleza, se tornou cadeirante. “Fiquei quase 4 anos sem conseguir me sentar“, contou ao Hypeness.

Mas não é porque estava com um novo corpo para lidar que deixou de viver. Na época, estava recém-formada na faculdade de Moda e se manteve ativa fazendo pulseira e chinelo para vender. “Eu queria fazer parte de alguma forma, mas não conseguia idealizar tudo o que tinha aprendido dentro da minha condição”.

Passou anos sendo designer autoral de sua própria marca de bolsas e, pós-reabilitação, que a permitiu ficar sentada na cadeira, fez um intercâmbio de três meses para Boston. A partir dessa experiência, notou o quanto pessoas com deficiência não estavam incluídas até mesmo no papel de consumidoras, pois nenhuma agência de viagens tinha informações ou programas específicos para elas.

Mesmo assim, partiu de mala e cuia para o Estados Unidos. “Foi lá que esbarrei numa exposição da IZ Adaptive, uma marca canadense de roupas adaptadas, com funcionalidade e estilo. Aquilo me abriu os olhos”, explicou a estilista.

Michele, ao centro, no Fashion Day Inclusivo

Ao voltar para o Brasil, conseguiu uma bolsa de pós-graduação na Faculdade Belas Artes, entregando um mini documentário junto ao TCC. Assim nasceu o projeto Meu Corpo é Real, que visa democratizar a moda por meio de produtos e ações, como o Fashion Day Inclusivo, um dia de consultoria de estilo e maquiagem para pessoas com deficiência, que precisam ser enxergadas pelo mundo. Michele também promove oficinas de fantasias adaptadas para o Carnaval e o Hypeness acompanhou esse dia colorido.

Queria dar voz ativa aos consumidores com deficiência, e tentar modificar a forma como as pessoas leem a moda para esse nicho. Percebi que se a moda vai ser inclusiva, é necessário que os profissionais, as marcas e os consumidores se percebam. E isso engloba não só trabalho, mas o ensino também.

Abaixo, ela divide com o Hypeness o processo de se redescobrir como cadeirante, as paixões dentro da moda e as insatisfações com o mercado.

Hypeness: Desde sempre você lida bem com seu corpo? 

Michele: Eu cheguei a conclusão que nunca tive um grilo muito grande. Sempre fui muito estimulada dentro da minha educação, com a minha mãe enaltecendo o amor próprio. Já tive altos e baixos, mas ainda muito nova me deu um estalo de “por que nunca estou satisfeita?”.

Apesar disso, acho que tive uma auto estima que me favoreceu muito. Vim de uma cidade (Rio Claro, no interior de São Paulo) em que o padrão não era o meu. Então construí uma imagem em que se eu estivesse bem comigo mesma, estava tudo certo.

– O acidente mudou alguma coisa na forma como você se enxergava? 

Após o acidente foi mais uma questão de entender o que ficava bem no meu corpo. Isso foi um processo crítico. Eu não tinha mais como pegar as referências que eu tinha antes.

Quando cheguei em casa e peguei a calça que eu usava até o acidente acontecer, eu não entendia porque ela ficou horrível no meu corpo. Eu mesmo nunca tinha estudado na faculdade uma modelagem para quem ficava sentado. Estes foram os pontos mais críticos nessa questão de lidar com o corpo.

– Você acredita que a moda ajuda na autoestima?

Com certeza. Autoestima pra mim é um caminho para autoconhecimento, apropriação do seu próprio corpo. Quando você entende quem você é e quem você quer comunicar, tem escolhas mais autônomas.

 

– Ainda temos muitas falhas de representatividade nas artes, de forma geral. Difícil a gente recordar de atrizes, cantoras, modelos ou estilistas cadeirantes, por exemplo. A ausência de referências fez falta para você? 

Vejo duas Micheles diferentes. Se lá atrás eu tivesse as referências desse movimento que está acontecendo hoje, talvez o processo de entendimento desse novo corpo tivesse sido mais fácil. Isso inclusive quando eu estava dentro do padrão, antes do acidente.

O pós-acidente faz com que eu sinta falta de representatividade em tudo, porque eu vivencio o tempo todo um mundo que me diz que nenhum lugar é feito pra mim.

Desde um restaurante que eu não caiba dentro da mesa, até uma loja que não tem uma representante que me deixe ver o caimento de uma roupa. Durante uns bons anos fiquei usando o combo legging e camiseta porque eu não conseguia pensar em coisas diferentes. Até que comecei a construir meu estilo com base no que já existe no mercado.

Meu sonho é que a moda se torne mais inclusiva em todos os aspectos. Hoje bato muito na tecla de fazer styling de forma inclusiva com esse propósito, porque a gente precisa fomentar a representatividade no mercado, fazer com que as pessoas com deficiência se percebam para movimentar toda essa roda.

– Você acha que as pessoas cadeirantes ou com alguma deficiência se sentem distantes da moda e, por isso, não exploram seu próprio estilo, não se sentem nesse direito?

Na minha opinião sim. Todas as entrevistas que fiz com pessoas com deficiência tem exatamente esse ponto: de não se ver na moda. E isso faz total diferença! As pessoas consomem por olhar. Somos movidos por essas referências. Não ter isso exposto em nenhum lugar te inibe.

A pessoa, mesmo que não trabalhe com moda, tem uma identidade e precisa se perceber. Isso acaba influenciando em muitas outras vertentes, como o mercado de trabalho, a credibilidade, a autoaceitação. São coisas que imprimem melhorias em muitos setores. Por isso que eu batalho tanto na moda como uma forma de comunicação.

– Os nichos ajudam nas reivindicações, mas por outro lado também são limitantes. Te incomoda ser referência em moda acessível e não em moda como um todo, por exemplo?

Não me incomoda pelo simples fato de que acho que é um processo. Óbvio que eu gostaria que as pessoas me enxergassem como uma profissional de moda. Ponto. Mas eu acho que neste momento faz parte do processo, para conseguir essa mudança. É a mesma coisa a Lei de Cotas. Você precisa começar por um ponto para chegar no mundo ideal.

Acredito que na moda é a mesma coisa. Não vamos ter nenhuma linha 100% acessível a todos os deficientes, ou comunicação que vá abraçar todo mundo, porque estamos falando de pessoas e pessoas têm especificidades diferentes.

Precisamos começar a trabalhar a moda. Não gosto do termo inclusivo, acho que segrega. Mas utilizo porque sei que hoje é mais fácil para as pessoas entenderem o que estou falando. Não teremos resultado de prontidão, mas trabalhamos para que esse mercado se torne cada vez melhor.

– O que as lojas e a indústria fashion precisam abolir de uma vez por todas e no que elas precisam investir com urgência?

Parar de ler a moda ainda como detentora de padrões e razões. A gente precisa conversar com o mundo. Estamos falando de corpos que a indústria não fala, mas que são a maioria.

Já passou o tempo dessa moda que insiste em trabalhar com um corpo branco, magro e alto.

A gente precisa de diálogo, falar com as pessoas, com as ruas, investir na troca e numa economia que beneficie não só essa indústria. Isso se expande para sustentabilidade, o consumo…por que não comunicar valores e coisas que tragam bem estar para as pessoas? Então acho que estamos num processo de mudança global.

O que é urgente hoje é conseguir acabar com essa pirâmide, que é o Trickle-down (ciclo da moda na vertical, colocado de cima para baixo, ou seja, das marcas para os consumidores), e investir no chamado Bubble up (teoria horizontal, que traduz as tendências de baixo para cima, ou seja, dos consumidores para as marcas). Faz o movimento de moda funcionar na marra.

Mas enquanto a gente não entrar na loja e se ver lá, percebemos que o movimento ainda está nichado. O mesmo acontece com o plus size. Ele existe, mas ainda está distante do que realmente se inseriu dentro da moda.

– Quando você se apaixonou por moda?

Eu gostava muito de roupa quando era mais nova e meus pais não tinham tanta grana ficar comprando as coisas pra mim. Então eu comecei a visitar o guarda-roupa deles e a customizar as peças, para ter mais variações. Pegava calças sociais do meu pai e casacos da minha mãe.

E comecei a perceber que aquilo me ajudava a comunicar alguma coisa. Esse processo de compor coisas me fascinava muito! Se transformar através das formas. Ainda me encanta, só que hoje tenho mais propriedade para falar. A imagem abre portas se você a trabalha bem. Acho que a moda auxilia muito nisso.

– Você sempre se vestiu desse jeito incrível? Sempre explorou seu lado criativo e seu estilo?

Eu fui mudando, mas sempre queria usar algo diferente. Acredito que tudo transmite, imprime ou comunica alguma coisa. Isso me fascina muito. Fui mudando meu estilo e cada hora estou de um jeito. Depende do meu humor. O lado geminiano que habita em mim me torna meio camaleoa.

 

 

– Quem são suas fontes de inspiração?

Variam bastante. Bebo de vários seguimentos, inclusive de arquitetura. Como cadeirante, ainda temos pouquíssimas referências, mas gosto muito da Jillian Mercado. Também gosto muito do estilo da Leandra Medine e da Elisa Nalin, que usam o lado criativo de uma maneira muito legal, com composição de texturas, cores e proporções.

 

– Qual peça do guarda roupa define a Michele?

Acho que brinco. Eu amo! É engraçado porque todo mundo bate foto de algum brinco gigante ou com cores mega fortes e me manda, falando que lembrou de mim.

E sapato também. São duas coisas que hoje fazem parte de mim. Talvez pela linguagem de costura de imagem. Trabalho bastante com pontos focais e quero que as pessoas me enxerguem por inteiro, da cabeça aos pés.

 

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