Sustentabilidade

Coronavírus: uma janela para outros mundos | parte #1 | Colapso climático na raiz do problema

16 • 06 • 2020 às 18:27
Atualizada em 02 • 12 • 2020 às 11:21
Clara Caldeira
Clara Caldeira   Editora-chefe Editora-chefe do Hypeness é jornalista, escritora e pesquisadora em gênero, filosofia e história da ciência, e mestranda na Faculdade de Saúde Pública da USP. Especialista em gestão na nuvem, tem 15 anos de experiência em jornalismo digital como ênfase em cultura, comportamento, cidadania, meio ambiente e direitos humanos. Nas horas vagas é taurina, poeta, quase vegana, leitora voraz, maga das kombuchas, cozinheira de coração cheio e oraculista em infinita formação.

O mundo como nós o conhecemos não existe mais. Quem disse isso não foi um filósofo, um poeta, um astrólogo, um sociólogo, ou um economista – apesar de muitos deles também o terem dito – essa constatação é de um biólogo. Átila Iamarino,  especialista  em microbiologia e virologia,  é um dos inúmeros  intérpretes da realidade que vem  alimentando o diálogo com este  novo paradigma que se apresenta à Humanidade. Um paradigma que nos foi empurrado goela abaixo de forma ironicamente autocrática, um aquário sem água dentro do qual nos debatemos em busca do ar.

É justamente o ar o que falta às vítimas do  novo coronavírus. Esse ar que vem sendo contaminado por CO2, causando o aquecimento global, a proliferação de alergias e doenças respiratórias é o mesmo ar usado pelo vírus para se propagar. Uma das características marcantes do novo coronavírus é sua alta capacidade de transmissão pelas vias aéreas. “Você não consegue puxar ar”, é o que relatam muitas das vítimas.

Em algum momento no final de 2019, há indícios de que um animal silvestre na província de Wuhan, na China, tenha entrado em contato com seres humanos e acendido o pavio de uma das maiores revoluções paradigmáticas globais dentre aquelas já presenciadas pelo ser humano. A teoria mais aceita atualmente aponta para os morcegos na origem de tudo.

Uma outra hipótese está baseada no fato  de que, em geral, os coronavírus – existem seis tipos de coronavírus já nomeados e mapeados no mundo, a Covid-19 é o sétimo – precisam de um hospedeiro intermediário para atingir a mutação necessária para infectar humanos. No caso da SARS (Síndrome respiratória aguda grave), por exemplo, esta ponte foi possibilitada por um mamífero chamado civeta. Já a MERS (síndrome respiratória do Oriente Médio), ao que tudo indica, chegou aos seres humanos através dos camelos.

Um dos animais que ganhou as manchetes recentemente como possível candidato ao título de hospedeiro intermediário do patógeno,  é o pangolim, pequeno mamífero asiático, o animal mais traficado no mundo.

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O coronavírus é o nosso futuro

Mas, se existe  um consenso entre os cientistas até agora é que uma pandemia como a que estamos vivendo está sendo prevista já há algum tempo e também que, ao que tudo indica, ela não será a última, nem a mais grave. “Não é uma situação de ‘se’ haverá uma epidemia de um desses coronavírus mas de quando e como nós estaremos preparados para enfrentar”, sentenciou em 2015 o virologista Ralph Baric, da Universidade da Carolina do Norte, especializado nesse tipo de vírus.

Cientistas como Atila Iamarino e a especialista em saúde global Alanna Shaikh, alertam ainda para o fato – e não possibilidade –  de que,  daqui para a frente, pandemias como a da Covid-19 e outras mais graves passem a se tornar regra e não exceção. “Vivemos num mundo mais conectado, mais empilhado, com mais pessoas vulneráveis… Quase toda doença saltou de animais para as pessoas e as condições da vida moderna propiciam a transmissão de vírus, e há, sim, potencial para outros piores”, resslta Iamarino.

Em uma conferência para o TED, em março de 2020, Alanna Shaikh lembrou que os coronavírus são zoonóticos, ou seja, transmitidos de animais para pessoas e que alguns deles, como a Covid-19, também são transferidos de pessoa para pessoa. A especialista explicou ainda que é muito difícil erradicar doenças zoonóticas, porque têm um hospedeiro animal. Ela cita como exemplo a gripe aviária, que pode até ser abolida de animais criados em fazendas, mas continua retornando todos os anos trazida por pássaros selvagens. “Não ouvimos falar muito dela pois não é transmitida de pessoa para pessoa, mas temos surtos em granjas todos os anos no mundo todo”, completa.

“Este não é o último grande surto que vamos presenciar, haverá mais surtos e epidemias. Isso não é uma probabilidade; é um fato. É o resultado de como nós, seres humanos, interagimos com nosso planeta”, alerta Shaikh. A especialista em sistemas de saúde explica que parte disso se explica pelas mudanças climáticas e pelo fato de que o calor torna o mundo mais favorável a vírus e bactérias. Ainda segundo Shaikh, a frequência desses surtos também diz respeito ao modo como a humanidade tem invadido os últimos lugares selvagens do planeta.

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“Quando queimamos e devastamos a floresta tropical amazônica para poder ter solo barato para a pecuária, quando a última mata africana é convertida em fazendas, quando animais selvagens são caçados até a extinção, os seres humanos entram em contato com populações selvagens com as quais nunca tiveram contato antes, e essas populações têm novos tipos de doenças: bactérias, vírus, coisas para as quais não estamos preparados. Enquanto continuarmos a tornar nossos lugares remotos menos remotos, os surtos continuarão chegando”, explica.  

Seres humanos e vírus convivem e sempre conviveram ao longo da história. O que tem trazido mudanças significativas para este cenário é que o contato está cada vez mais próximo e acontece de forma ‘não natural’, por conta do crescimento populacional, do desmatamento, expansão de áreas para agricultura e habitação e do aumento dos fluxos de pessoas, característico de um mundo globalizado. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), 75% das doenças emergentes e das doenças re-emergentes que irão afetar a saúde humana ao longo do século XXI serão de origem zoonótica (transmitida por animais para humanos). O projeto de pesquisa estadounidense Global Virome estima que existam mais de 1,7 milhão de vírus ainda não descobertos na vida selvagem e que quase metade deles pode ser prejudicial aos seres humanos.

Colapso climático: a raiz do problema

Nos últimos anos, a população do planeta  vêm sofrendo pelo mundo com eventos extremos como secas, incêndios, tsunamis, degelo, furacões, crises hídricas e migratórias e, agora sabemos, epidemias e pandemias, cujo impacto é ampliado pelas desigualdades geradas pelos sistemas econômico, social e político vigentes. No ano passado, a Organização das Nações Unidas já alertava para o risco de uma crise climática antes de 2040. 

O IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), lançou em agosto de 2019, em Genebra, o Relatório especial sobre mudança climática e terra. O documento aponta para a importância do combate ao desmatamento, a necessidade de recuperação florestal, de mudanças nas práticas agrícolas e para a necessidade urgente de contenção da degradação das terras como ações capazes de combater as mudanças do clima e de promover uma readequação da sociedade a este contexto.

As recomendações são resultado de dois anos de trabalho de 103 peritos, de 52 países, que participaram voluntariamente do estudo. Ainda segundo o relatório, a redução do desmatamento e da degradação podem ser capazes de evitar a emissão de até 5,8 bilhões de toneladas de CO2 por ano no mundo.

A destruição de florestas e ecossistemas em equilíbrio expõe os seres humanos a novos vírus desconhecidos, que antes estavam ‘isolados’ na natureza, exatamente por conta desse equilíbrio. O desmatamento e a extinção crescente de espécies de animais vai eliminando os hospedeiros naturais dos vírus e aumentando, cada vez mais, as possibilidades de contaminação.

Um prato que se come frio

O aumento da demanda de carne para consumo é considerado como fator  agravante deste cenário. É comum, em diversos países, a existência de mercados que vendem carne e animais selvagens vivos para o abate sem medidas sanitárias. Nesses locais, as pessoas têm contato com a flora microbial dos animais ao comprá-los e durante o transporte, o abate, o preparo e o consumo, circunstâncias em que os vírus podem se combinar e sofrer mutações.

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Na China, a cultura de consumir animais selvagens tem aumentado o contato com novos micro-organismos, mas o país não é o único responsável nem é esta a única porta encontrada pelos vírus para se espalhar. A criação de animais confinados, prática fundamental para o abastecimento de carne, leite e ovos de boa parte do mundo,  também representa risco. Um exemplo é o já mencionado vírus da gripe aviária H5N1, letal para as aves, que sofrem com doenças respiratórias graves. Nos criadouros, com animais confinados aos milhares, a H5N1 pode se espalhar rapidamente. Este confinamento também contribui para a mistura de diferentes vírus, aumentando possibilidade de mutações. 

E por falar em confinamento, até o início de 2020 todas as recomendações climáticas e dossiês elaborados por especialistas tinham uma aura utópica e eram levados pouco (ou nada) a sério por políticos, empresas e pela sociedade em geral. Mas no dia 9 de janeiro deste ano, com a primeira morte por Covid-19 registrada na China, abriu-se uma janela para a possibilidade de mudança desse cenário e a palavra ‘confinamento’, assim como o coronavírus, extrapolou as barreiras do mundo animal, passando a fazer parte também do dia a dia dos seres humanos.

[Continua…]

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