Sustentabilidade

Coronavírus: uma janela para outros mundos | parte #3 | o divórcio entre humanidade e natureza

02 • 06 • 2020 às 12:30
Atualizada em 22 • 06 • 2020 às 20:20
Clara Caldeira
Clara Caldeira   Editora-chefe Editora-chefe do Hypeness é jornalista, escritora e pesquisadora em gênero, filosofia e história da ciência, e mestranda na Faculdade de Saúde Pública da USP. Especialista em gestão na nuvem, tem 15 anos de experiência em jornalismo digital como ênfase em cultura, comportamento, cidadania, meio ambiente e direitos humanos. Nas horas vagas é taurina, poeta, quase vegana, leitora voraz, maga das kombuchas, cozinheira de coração cheio e oraculista em infinita formação.

Nos dois primeiro textos da série “Coronavírus: uma janela para outros mundos”, introduzimos algumas reflexões catalizadas pela pandemia do novo coronavírus. No primeiro texto, investigamos sua relação com o atual contexto de crise ambiental, com nossos hábitos de consumo e apontamos, cientificamente, a perspectiva de que a manutenção deste cenário deve nos conduzir a outras pandemias e catástrofes globais do ponto de vista humano e ambiental.

No segundo texto, foi a vez de olhar para economia. Foi o vírus – um fator externo – o responsável pela atual crise econômica? Que características do sistema capitalista neoliberal tornam-o tão vulnerável a interferências entendidas como externas? Não estaria o atual sistema econômico mais uma vez padecendo se suas próprias inconsistências e contradições?

Ainda neste segundo texto, Introduzimos o conceito de Bem Viver, a partir do livro “O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos”, de Alberto Acosta, economista equatoriano, ex-ministro de Minas e Energia e ex-presidente da Assembleia Constituinte do Equador. Entendido como uma filosofia em construção, proveniente da matriz comunitária de povos que vivem em harmonia com a Natureza, o Bem Viver se propõe a revelar falhas e limitações das diversas teorias do desenvolvimento, recuperando a visão de mundo dos povos marginalizados pela história, em especial dos povos ameríndios.

Coronavírus: uma janela para outros mundos | parte #1 | Colapso climático na raiz do problema

Coronavírus: uma janela para outros mundos | parte #2 | A chave na engrenagem

Para pensar novos mundos e construir novas perspectivas de futuro enquanto humanidade não podemos deixar de examinar nosso passado. A construção do pensamento ocidental e os fenômenos fundamentais à sua hegemonia – como a escravidão e os processos de colonização – podem fornecer algumas pistas preciosas quanto a equívocos passados, em termos de práticas civilizatórias, que podem nos ajudar a pensar o que precisa ser transformado daqui pra frente na busca por um futuro mais justo e plural.

Progresso: um conceito em desconstrução

Uma etapa essencial aos questionamentos propostos pelo Bem Viver é a des(re)construção do conceito de progresso, que emergiu com força há cerca de 500 anos na Europa, sintonizado com o colonialismo e depois também com o capitalismo (ACOSTA, 2016, p. 63). Com as invasões coloniais na América, começou a impor-se um imaginário que tinha como objetivo legitimar a superioridade do europeu, o “civilizado”, e a inferioridade dos povos originários, o “primitivo”. Emergiram então a colonialidade do poder, do saber e do ser, vigentes até hoje e responsáveis pela atual organização do mundo. Para cristalizar esse pensamento, a Europa consolidou uma visão que coloca o ser humano como “descolado” da natureza, falando “por fora” dela e com isso abriu caminho para dominá-la e manipulá-la (ACOSTA, 2016, p.63). 

A Lição de Anatomia do Dr. Tulp (neerlandês: De Anatomische les van Dr. Nicolaes Tulp) é uma pintura a óleo sobre tela de Rembrandt, pintada em 1632

Definiu-se, portanto, a natureza sem considerar a Humanidade, desconhecendo que nós, seres humanos, também somos natureza. Acosta propõe um percurso de desconstrução do imaginário racionalista mecanicista, que sustenta a lógica científica e os sistemas sócio-políticos e econômicos dominantes. Para isso, faz uma leitura crítica de Francis Bacon (1561 – 1626) e René Descartes (1596 – 1650), e de suas construções do universo como máquina e da natureza à serviço do homem. A proposta de Acosta tem uma base sólida na antropologia de Levi Strauss e Pierre Clastres, e encontra eco, mais recentemente, nas correntes de pensamento desconolonizadoras, bem representadas por nomes como Eduardo Galeano, Wolfgang Sachs, Boaventura de Souza Santos, Achille Mbembe e María Lugones, entre muitos outros.

Em tempos de fanatismos religiosos e desvalorização da produção científica, é importante ressaltar que a crítica à  base mecanicista e exploratória do sistema atual e a tentativa de recuperação da  ideia de comunhão com a natureza, não pretende tomar a religião como substituta ou saída de emergência. Pelo contrário. Um dos caminhos propostos é justamente a recuperação, preservação e valorização dos saberes de povos e culturas que ficaram relegados a segundo plano, e foram, na melhor das hipóteses, classificados como “alternativos” ou, na maioria dos casos, dizimados pelo colonialismo e condenados pelos valores judaico-cristãos.

O divórcio forçado entre Humanidade e Natureza

Para aprofundar a reflexão, é interessante também seguir a trilha de outros racionalistas que, ainda no século XVII, debateram, as proposições de René Descartes  e Francis Bacon, propondo uma visão mais integrada da vida, do ser humano, de Deus e da natureza, como aquela de  Baruch Espinosa (1632 – 1677). Um dos grandes filósofos racionalistas  do século XVII, Espinosa fugiu com a família da inquisição católica e foi posteriormente excluído da comunidade judaica. Em 27 de julho de 1656, a Sinagoga Portuguesa de Amsterdã puniu Espinosa com o chérem, o equivalente hebraico da excomunhão católica, por conta dos postulados a respeito de Deus em sua obra. 

Segundo Marilena Chaui, “ao demonstrar que Deus e Natureza são uma só e mesma coisa”, que a “religião é apenas consolação para a alma do devoto”,  e que o “o poder político não nasce de um contrato social, mas da força da multidão reunida”, Espinosa faz desabar os pilares que sustentam a superstição religiosa, a tirania política e a servidão ética (SPINOZA, 2018, c. 1677, p.13). 

Baruch de Espinosa após ser excomungado pela comunidade de rabinos — ilustração de Szmul Hirszenberg

Apropriando-se de princípios da física quântica e seguindo um método axiomático-dedutivo, inspirado na geometria euclidiana, Espinosa chegou, em sua obra denominada “Ética”, publicada postumamente, a ideias que podem servir de base para o questionamento do divórcio entre humanidade e natureza, sobre o qual estão fundamentadas as bases da religião e da ciência moderna. As ideias de Espinosa servem de suporte para a releitura  de ideias originárias de culturas diversas,  que podem ser encontrados na filosofia e na ciência tradicional da Índia , na medicina chinesa, como  também nos saberes e nas formas de organização das comunidades ameríndias, nas tribos australianas e nos povos originários de diversos territórios pelo mundo.

Essas outras formas de pensar vem sendo tratadas de forma abissal (SANTOS, 2007, online) pela lógica socialmente instituída. O pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal, constituído de distinções visíveis e invisíveis. As distinções invisíveis fundamentam as visíveis, e são estabelecidas por linhas, que dividem a realidade social em dois universos: “deste lado da linha” e “do outro lado da linha”. Essa divisão é tão demarcada que “o outro lado da linha” desaparece como realidade, tornando-se inexistente, no sentido de ser irrelevante ou incompreensível. Tudo que é inexistente nesse sentido é excluído de forma radical. A característica fundamental do pensamento abissal é, portanto, a impossibilidade de coexistência dos dois lados da linha (SANTOS, 2007, online). 

Caça às bruxas: o corpo como campo de batalha

O Bem Viver, Buen Vivir, que também pode ser interpretado como sumak kawsay, em kichwa, suma qamaña, em aymara, ou ainda nhandereko, entre os guaranis (ACOSTA, 2016, p. 31) é uma filosofia em construção, universal  no sentido de não ser própria de um território, de uma nação ou de uma cultura específica,  e que parte da cosmologia e do modo de vida ameríndio, apesar de estar também presente em diversas culturas. Está também na ética e na filosofia sul africana do ubuntu, “eu sou porque nós somos”, no svadeshi, swaraj e apargrama, movimentos pela autonomia e independência indiana, no ecossocialismo, nos mutirões de vila e favelas, comunidades rurais e nas mikas ou mingas andinas.

Seu significado está em viver em aprendizado e convivência com a natureza e a comunidade, fazendo-nos reconhecer que somos “parte” delas e que não podemos, portanto, continuar vivendo à parte dos demais seres do planeta. Nós, humanos, também somos natureza e, sendo natureza, quando nos desligamos dela e lhe fazemos mal, estamos fazendo mal a nós mesmos. O Bem viver recupera essa sabedoria ancestral, rompendo com o alienante processo de acumulação capitalista que transforma tudo e todos em coisa.

De Humani Corporis Fabrica (Pádua, 1543), de Andreas Vesalius. Mulher dissecada é apresentada ao público, simbolizando o triunfo da ordem patriarcal

Independentemente de onde estivermos –  num grande centro urbano, dentro de um avião cruzando oceanos, no ambiente artificial de um shopping center ou até mesmo dirigindo um carro –  existe “algo” em nós que não nos permite desligar-mo-nos completamente, ainda que racionalmente o façamos, da ideia de que somos natureza. Esse “algo” é nosso corpo, um organismo vivo, com necessidades e demandas fisiológicas, mas também atravessado por pulsões e aspirações de outras ordens. Desde o período pré-capitalista, esse corpo foi identificado como um lembrete inconveniente. Um lembrete de que temos desejos, necessidades e limitações. De que adoecemos, nos cansamos e morremos. Um lembrete de que temos um corpo e ele é natureza e de que, assim sendo, precisa ser nutrido e preservado. Mais do que um lembrete, esse corpo foi identificado como uma potência a ser silenciada a serviço de um projeto de poder.

A alienação e o silenciamento do corpo – em especial do feminino, do negro, do indígena e do proletário, destacando aqui um importante recorte de gênero, raça e classe – foi um processo essencial à construção do capitalismo. Uma das condições para o desenvolvimento capitalista o processo definido por Foucault como “disciplinamento do corpo”, uma empreitada bem sucedida do Estado e da Igreja para transformar as potencialidades dos indivíduos em força de trabalho (FEDERICI, 2017, p. 240).

 

A execução de Anne Hendricks por bruxaria, em Amsterdã, 1571, de Jan Luyken

O  surgimento,  de um conflito entre a razão e as paixões do corpo, que ocorre no século XVII  “dá um novo sentido aos clássicos temas judaico-cristãos para produzir um paradigma antropológico inovador” (FEDERICI, 2017, p. 241). O conflito seria  agora encenado dentro da pessoa, espaço de disputa habitado por elementos opostos em luta pela dominação. A ideia das “forças da razão” em oposição aos “baixos instintos do corpo”, reforça o divórcio entre mente corpo, entre humanidade e natureza, fundamental ao desenvolvimento do capitalismo. Segundo este pensamento, a razão deve manter-se atenta aos “ataques do ser carnal” para evitar que a “sabedoria da carne” corrompa os “poderes da mente” (FEDERICI, 2017, p. 242). Esse conflito seria “purificado” mais tarde, para favorecer uma linguagem “mais masculina”, movimento que pode ser observado na “Reforma da Linguagem”, tema chave na filosofia dos séculos XVI e XVII.

Assim como a Natureza , reduzida à “Grande Máquina”, pôde ser conquistada e (segundo as palavras de Bacon) “penetrada em todos os seus segredos”, da mesma maneira o corpo, esvaziado de suas forças ocultas, pôde ser “capturado em um sistema de sujeição” em que seu comportamento pôde ser calculado, organizado, pensado tecnicamente e “investido de relações de poder” (Foucault 1977 apud FEDERICI, 2017, p. 253).

O corpo, enquanto máquina, tinha que viver, para que a força de trabalho pudesse existir. Morreu  o conceito de corpo como  receptáculo de algo que na época era muitas vezes chamado de “poderes mágicos”. Em outras palavras, por trás da nova filosofia, é possível detectar uma empreitada do Estado, a partir da qual o que é classificado como “irracional” é considerado crime. O capitalismo não poderia ter se desenvolvido sem a consolidação do corpo-máquina como modelo de comportamento social e sem a destruição, por parte do Estado, e com a ajuda da Igreja, de uma ampla gama de crenças e saberes. Esta é a leitura  da escritora e ativista dos direitos da mulher Silvia Federici para a caça às bruxas na Europa pré-capitalista, e que tem continuidade com o período colonial.

El abrazo de amor de El Universo, la tierra (México), Yo, Diego y el señor Xólotl. Obra da pintora mexicana Frida Kahlo, feita em 1949 (The Jacques and Natasha Gelman Collection/The Vergel Collection)

Nos arquivos da Inquisição sobre as investigações realizadas no México, durante o século XVIII para erradicar as crenças mágicas e heréticas (Behar 1987 apud FEDERICI, 2017, p. 219), os testemunhos revelam numerosos intercâmbios entre mulheres sobre temas relacionados a curas mágicas e remédios. Essas trocas foram criando, com o tempo, uma nova realidade cultural, fruto do encontro entre tradições africanas, européias e indígenas. Entendido pela inquisição como próprio de “gente carente de razão”, este universo é marcado pelo interesse, principalmente entre as mulheres, em compartilhar conhecimentos e práticas tradicionais, muitos deles destinados a controlar a reprodução e curar doenças. Assim como a discriminação estabelecida pela “raça” — importada pelos colonizadores da Europa — a discriminação por gênero teve, portanto, um papel fundamental na destruição da vida e da rede de saberes e trocas comunitárias, estratégia pautada por interesses econômicos específicos e essencial para a criação das condições para uma economia capitalista.   

O sonho da Pedra: o outro lado da linha 

Um dos pensadores contemporâneos que, no Brasil, tem se tornado um importante defensor deste movimento de retomada do pensamento pré-colonial, é Ailton Krenak. Considerado como uma das mais importantes lideranças do movimento indígena brasileiro, o escritor e ambientalista da etnia Krenak tem, nos últimos anos, viajado pelo Brasil e por diversos outros países, compartilhando, por meio de palestras e conferências, um pouco de sua visão de mundo, construída sobre uma base comunitária e valores ancestrais de um povo que vive em comunhão com a natureza.

Ailton Krenak (Companhia das Letras – divulgação)

Como a maioria dos povos indígenas que ainda resistem no Brasil, os Krenak tem uma história de luta e resiliência, marcada por batalhas pela preservação de seus corpos e de sua existência, mas também pela preservação da natureza e do meio ambiente, entendidos como uma unidade. Chamados,  no século XVIII, de Aimorés,  pelos Tupis,  e de Botocudos,  pelos portugueses, os Krenak se autodenominavam Grén ou Krén, e hoje se identificam como Borun, que significa essência do ser. Os Krenak são os últimos sobreviventes da nação “Botocudo” (Botocudos do Leste), como eram chamados pelos portugueses devido ao uso de botoques auriculares e labiais.

Foram muitas e constantes as investidas contra os Krenak para que desocupassem as margens do rio Doce, um território cobiçado pela exploração. Estima-se que no início do século XX havia 5 mil Krenaks  reduzidos a apenas 600 na década de 1920. Com a construção da estrada de ferro Vitória-Minas no final do século XIX e início do XX, eles foram pressionados a abandonar as terras do Vale do rio Doce. Por volta de 1911, foram agrupados pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI,  em uma área próxima, liberando  assim suas terras para a expansão econômica. Em 1920, o governo de Minas Gerais destinou uma parte do território original Krenak à tribo e, em 1923, foi feita a demarcação, após o massacre dos Kuparak um grupo “Botocudo”.

Mas a guerra ainda não estava terminada – para os povos ameríndios, desde 1492, ela nunca de fato terminou.  Em 1953, os Krenak foram transferidos para o Posto de Maxacali e, em 1959, tiveram suas terras ocupadas pela Polícia Florestal e fazendeiros. A reintegração de posse das terras Krenak teve início em 1970, mas, apesar de terem seus direitos definidos pela justiça, em 1973 foram transferidos para a Fazenda Guarani, em Carmésia. Na década de 1980, com a ajuda de indigenistas, retornaram às suas terras, mas agora ocupando apenas 44 hectares do que lhes foi doado pelo Governo em 1920. Hoje, os Krenak habitam uma área  entre Minas Gerais, Mato Grosso e São Paulo, mas, devido à dispersão a que foram sujeitos,  estão presentes também em diversas outras áreas indígenas.  

Povo Krenak – Acervo Plinio Ayrosa /USP

Povo Krenak – Ligia Simonian, 1987

Ainda sobre Ailton  Krenak, é preciso  assinalar  que a  importância de suas falas está justamente na tentativa de  resgate da integração entre Humanidade e Natureza e na lembrança de que nós, seres humanos, mesmo sendo racionais, não deixamos de ser  animais e, portanto, natureza,  que, aliás, não é constituída apenas de fauna e flora. Em “Ideias para Adiar o Fim do Mundo”, Krenak conta a história de um pesquisador europeu que, no início do século XX, foi aos Estados Unidos visitar a nação indígena dos Hopi e, ao chegar, pediu a alguém para mediar seu encontro com uma anciã que gostaria de entrevistar (KRENAK, 2019). Ao encontrá-la, ela estava parada perto de uma rocha. Depois de algum tempo de espera, ansioso, ele perguntou ao facilitador: “Ela não vai conversar comigo?”. E ele respondeu: “Ela está conversando com a irmã dela”. A irmã dela, no caso, era a rocha.

Krenak conta também que na região onde o rio Doce foi atingido pela lama da mineração existe uma serra,  bem próxima à  aldeia. Ele lembra que aprendeu que essa serra tem um nome, Takukrak, e que, além de nome, ela tem também personalidade. De manhã, do terreiro da aldeia, as pessoas olham para a serra e sabem se o dia vai ser bom ou se “é melhor ficar quieto”. Krenak diz ainda que no Equador e na Colômbia há lugares onde as montanhas formam casais, famílias, trocam afeto e que as pessoas que vivem nos vales em torno dessas montanhas fazem festas para elas, oferecem alimento, dão e ganham presentes.

Mas o que Ailton Krenak quer nos dizer com suas indagações é “Por que essas narrativas não nos entusiasmam? Por que elas vão sendo esquecidas e apagadas em favor de uma narrativa globalizante, superficial, que quer contar a mesma história para a gente?”. A história de que humanidade e natureza são coisas distintas. A história que permite que continuemos a extrair recursos da natureza de forma indiscriminada, promovendo o colapso de ecossistemas e a extinção de espécies e recursos como se isso não representasse o nosso próprio colapso e a nossa própria extinção enquanto espécie.

É justamente essa a proposta do Bem Viver. Para Alberto Acosta, é a recuperação dessa sabedoria ancestral, dessas narrativas apagadas e esquecidas que vai nos ajudar a romper com o “alienante processo de acumulação capitalista que transforma tudo e todos em coisa”. A busca de novas formas de vida e de organização social traria, segundo os autores, a revitalização necessária para a discussão política, transcendendo a visão economicista sobre fins e meios. 

Hoje, durante mais um colapso do sistema que transformou o mundo e as pessoas em máquinas, quando as perguntas se multiplicam e as antigas certezas parecem não mais dar conta das respostas, abre-se uma janela para a possibilidade de outras formas de pensar a vida. Mais do que isso, mostra-se clara a necessidade de novas formas de pensar a sociedade. Não existe homogeneidade entre as práticas econômicas e sociais das comunidades indígenas. O que as une, e o que nos interessa aqui, é que em suas raízes está a ideia central e consolidada de reciprocidade entre os seres que são e habitam o planeta, e que formam parte da Pacha Mama. Assim como o que une cientistas indianos, médicos chineses, Espinosa, Acosta, Kopenawa, Krenak e Federiti é consciência do caráter inter-retro-conexões transversais entre todos os seres. A ideia de que tudo tem a ver com tudo, em todos os pontos e em todas as circunstâncias, coincide com a relacionalidade do mundo indígena, nas palavras do teólogo Leonardo Boff (ACOSTA, 2016, p. 144).

[Continua…]

Leia a primeira parte deste texto.

Leia a segunda parte deste texto.

Bibliografia

ACOSTA, Alberto. O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. 4ª reimpressão. São Paulo: Autonomia Literária, Elefante, 2016. 

FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução: coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. 

Museu Histórico e Pedagógico Índia Vanuíre. Os Krenak. Museu Índia Vanuíre – https://www.museuindiavanuire.org.br/. Disponível em: https://www.museuindiavanuire.org.br/india-vanuire/os-krenak. Acesso em: 27 abr. 2020.  

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos estud. – CEBRAP. n. 79. São Paulo. nov. 2007. Disponível em:

https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002007000300004#back2. Acesso em: 20 abr. 2020.

SPINOZA, Benedictus de, 1632-1677. Ética/ Espinosa; tradução Grupo de estudos Espinosanos; coordenação Marilena Chaui. – 1. ed., 1. reimpr. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2018, c. 1677.

 

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