Debate

Maternidade solo e pandemia: ‘Vizinhas juntaram o que tinham e trouxeram para mim’

06 • 07 • 2020 às 21:43
Atualizada em 09 • 03 • 2021 às 11:49
Veronica Raner
Veronica Raner Jornalista em formação desde os sete anos (quando criou um "programa de entrevistas" gravado pelo irmão em casa). Graduada pela UFRJ, em 2013, passou quatro anos em O Globo antes de sair para realizar o sonho de trabalhar com música no Reverb. Em constante desconstrução, se interessa especialmente por cultura, política e comportamento. Ama karaokês, filmes ruins, séries bagaceiras, videogame e jogos de tabuleiro. No Hypeness desde 2020.

Juliana se mudou para Sapucaia do Sul (RS) em fevereiro de 2020. A decisão de sair da cidade onde morava e ir para o município vizinho veio após o marido receber uma proposta de emprego. Depiladora, Juliana estava há um ano sem trabalhar. Ela parou quando sua filha mais nova, de um ano, nasceu. Um mês após chegar em Sapucaia, ela e o marido, pai de sua filha, se separaram. Era março, o começo da pandemia de coronavírus no Brasil, mas não o começo do exercício da maternidade solo por Juliana, que, além da filha bebê, tem um filho de 15 anos, com suspeita de autismo, e um terceiro, de oito, que vive com o pai. 

A separação deixou Juliana com a bebê e o adolescente morando de favor em uma casa na cidade. Sem apoio da família, ela passou a contar com a boa vontade do dono do imóvel, que não cobrava aluguel e ainda se dispôs a arcar com os custos da conta de água da casa. Como se a situação não pudesse piorar, os anos como fumante colocaram Juliana no grupo de risco para a Covid-19. “Graças a Deus nessa quarentena eu parei de fumar, mas meu pulmão é de um idoso de 80 anos”, conta ela, aos 33 anos, sobre sua saúde. 

Logo no começo (da separação e da pandemia), a situação ficou tão ruim que eu não tinha nada para dar para os meus filhos. As vizinhas que juntaram o que elas tinham e trouxeram um pouco para mim

Ele era um outro filho, para falar bem a verdade. Ele só tinha idade e tamanho, mas tinha o mesmo comportamento do meu filho de 15 anos. Eu falava para ele: ‘Compara seu comportamento com o dele, você está sendo igual ao meu filho de 15 anos’”, ela conta, em entrevista ao Hypeness pelo telefone. 

A situação dela é igual à de muitas mulheres pelo Brasil que criam, sustentam e são responsáveis pelos filhos, emocional e financeiramente, sem a presença de um companheiro ou de uma rede de apoio eficaz. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2017, mostram que 57 milhões de famílias brasileiras são chefiadas por mulheres. O número daria aproximadamente 40% do total. 

Coronavirus, isolamento social e a sobrecarga de mulheres mães

Nísia tem 42 anos e mora em Brasília com a filha de cinco anos e o filho de seis. No começo de setembro de 2019, ela foi diagnosticada com um quadro grave de pneumonia. A difícil recuperação acabou afastando-a da função que ocupava como tosadora de cães em um petshop. A proximidade com os pelos dos animais impedia que ela pudesse continuar e ela foi demitida. 

Dez dias antes de as escolas fecharem no Distrito Federal, Nísia conseguiu uma vaga para o filho mais velho na rede pública. A vaga da filha veio no dia 14 de março, mas a menina não chegou a cursar um dia sequer por conta do decreto que obrigou o fechamento das instituições de ensino no dia 11 daquele mês. Há um mês, a ex-tosadora sofreu um acidente e lesionou os joelhos. Qualquer caminhada curta passou a ser impossível para ela. 

Nísia vive em uma casa alugada por amigos, que dividem entre si os R$ 750 reais da despesa. O pai das crianças buscava os filhos todo fim de semana, por ordem da Justiça, mas, depois do começo da pandemia, teve que parar. Ele contraiu a doença que Nísia tanto teme pegar, mas o argumento não é justificativa para a ausência paterna. Ela observa que ele nunca a assistiu em nada na criação dos filhos.

Sempre criei meus filhos sozinha, sem a presença do pai. Ele nunca me deu assistência (durante a gravidez). Ele veio me dar assistência porque o juiz obrigou, mas isso após o nascimento. E a mãe dele falou que a minha filha não era filha dele e me levou para (fazer o teste de) DNA. Por isso eu sempre falo que são sete anos de luta sozinha com eles.

Thaiz Leão ilustra o dia a dia de tarefas de mães solo.

‘Segura a Curva das Mães’ dá suporte emocional e financeiro a mães solo

Juliana e Nísia estão separadas geograficamente por mais de 2,1 mil quilômetros, mas a realidade que vivem as aproxima. As duas tiveram as vulnerabilidades do seu dia a dia agravadas pela pandemia do coronavírus. De diferentes formas, elas chegaram ao projeto “Segura A Curva das Mães”, idealizado para dar suporte financeiro e emocional para mães e seus respectivos filhos enquanto durar a emergência sanitária.

Quando a gente pensou em construir o projeto, a gente já sabia que a partir do dia 1 a gente já ia ter várias mães beirando a curva do precipício mesmo. Porque a vida já é insustentável, a quarentena chegando, a pandemia chegando e a necessidade do distanciamento chegando ia tornar a vida impossível. O ‘Segura A Curva’ veio disso, de tentar fazer com que a vida não ficasse impossível”, explica Thaiz Leão, criadora da página “A Mãe Solo”, que conta com quase 100 mil curtidas no Facebook, e uma das idealizadoras do projeto, ao lado de Thais Ferreira.

Coronavírus e o impacto nos negócios de mulheres empreendedoras

O nome é uma alusão à expressão que se tornou comum no dia a dia do “novo normal”: “precisamos achatar a curva (de infectados e mortos)”, dizem à exaustão os especialistas. Thaiz e Thais contam que a decisão de iniciar o projeto foi simultânea. As duas perceberam, ao mesmo tempo, sobre a importância de estender o trabalho que já tinham na área da defesa dos direitos da mulher para o recorte especial durante a pandemia. 

“Primeiro, nós fizemos um questionário bem demográfico perguntando sobre as realidades, condições de saúde antes da Covid e outras questões semelhantes. Porque a gente parte da ideia de que essas mulheres já estavam em um lugar de vulnerabilidade e isso só foi agravado pela pandemia”, explica Ferreira.  “As pessoas perguntam se a gente não têm medo de levar golpe, mas não. Porque, por mais que uma mãe queira crescer em cima disso, a gente sabe que não vai ser essa ajuda que vai fazer diferença. A gente está reduzindo a necessidade de ela se colocar em risco, porque o risco já existe.”

A princípio foram mapeadas 732 mães em 21 estados, incluindo o Distrito Federal. O número foi alcançado em apenas uma semana. A rapidez fez com que Thais e Thaiz parassem de aceitar inscrições. “O problema é muito grande e nós somos pequenas. Não adiantava criar uma expectativa enorme e não atender todo mundo”, explica. 

A ideia inicial era que cada mãe ajudada fosse beneficiada com R$ 300, além de apoio psicológico e jurídico de profissionais voluntários das áreas. Thais explica que a cota foi reduzida à metade como uma tentativa de tapar a lacuna deixada pela demora no depósito do auxílio emergencial oferecido pelo governo federal. 

“A gente está falando do Brasil, que tem mãe para caramba porque todo mundo é filho e todo filho tem mãe. E a mãe é aquela que está lá, mas ninguém vê. Porque a cultura patriarcal coloca a mulher nesse lugar de ausência total. Mães já estão isoladas naturalmente e essa conjuntura só agravou essa condição”, reflete.

As crises social, econômica e sanitária amplificadas exponencialmente pelo novo coronavírus fizeram a renda diminuir, os empregos sumirem, mas, o trabalho aumentar. As funções invisíveis de cuidado e suporte aos filhos — vistas pela sociedade como obrigações maternas — se acentuaram em um cenário de escolas fechadas e cerceamento de liberdade. Sem poder ir às ruas ou recorrer a outras formas para entreter seus filhos, muitas mães se viram dentro de casa sem condições de manter as contas da família em dia e sem apoio. 

‘A quarentena e o isolamento social não mudaram muita coisa para mim.’

A realidade que afligiu tantas mães de surpresa, não é nenhuma novidade para parte delas, como Joyce, modelo fotográfica independente que vive no município de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Mãe de uma menina de sete anos e de um menino de um, ela já se encontrava “isolada” muito antes dos hospitais estarem lotados ou de máscaras se tornarem artigos obrigatórios no vestuário coletivo. 

A quarentena e o isolamento social não mudaram muita coisa para mim. Eu sou uma mãe solo de duas crianças. Aqui, no bairro onde eu moro, não tem vaga na escola para a minha filha. Com o coronavírus ou sem o coronavírus a A. (não vamos expôr os nomes das crianças) já não estava estudando”, conta. Joyce está processando o Estado por intermédio do Ministério Público para conseguir uma vaga na escola para a filha antes mesmo da quarentena começar.

Não tenho condição de pagar uma escola particular e todas as escolas a minha volta não têm vaga. Então, antes mesmo do coronavírus chegar aqui, ela já estava dentro de casa e eu tentando alfabetizar a minha filha.

Uma voluntária, que nem professora é, ajuda a menina a ter aulas de alfabetização pela internet. Mesmo com tão pouca idade, A. já diz que quer estudar Artes Cênicas. Um colega de Joyce, que também é artista, oferece aulas culturais online para a garota. Tanto o pai de A. quanto o pai do menino K. não exercem a paternidade. 

“Não isso não existe na minha vida diária. Estou na Justiça pedindo a guarda de fato dela porque o pai dela exerce o que eu chamo de paternidade opcional. Ele mora na minha rua e não exerce a paternidade. E o pai do meu filho mais novo vem a cada 15 dias. Ele não estava vindo, passou um mês sem vir por causa do coronavírus. E aí ele falou para mim que estava para voltar para a faculdade e o trabalho e eu perguntei: ‘se pode voltar para isso tudo, pode vir ver o filho, né?’ Claro que tomando as medidas necessárias porque é óbvio que não vai colocar o meu filho em risco”, ressalta. 

“Na maternidade dele eu tenho até uma ajuda que é a pensão que o pai dá.. Já na maternidade da minha filha, eu não tenho nada. Estou na Justiça tentando pegar a guarda dela de fato porque o pai dela não ajuda em nada. Eu odeio essa palavra ‘ajudar’ para pai porque o pai tem que exercer a paternidade assim como a mãe exerce a maternidade”, diz. “E as pessoas ainda vem te culpar e falam ‘por que você não se cuidou?’ Não sabem que eu me cuidei sim, na minha segunda gravidez eu inclusive usei camisinha e tomei pílula do dia seguinte!”

De voluntária a beneficiada

Benizáuria, de 52 anos, é baiana, de Salvador, e tem três filhos adultos. As duas mulheres moram com ela e o filho mais velho vive com a família em outra casa. Ela é ‘baiana de acarajé’ mas, até o ano passado, trabalhava também como cuidadora de idosos. Um acidente, quando pegava um ônibus para voltar para casa, deixou Beni com severas dores na coluna e ela acabou sendo demitida. Quando se viu desempregada, decidiu fazer um curso gratuito de empreendedorismo, no Parque da Cidade. 

Como eu sempre dediquei minha vida para ajudar o próximo, eu fui aprender isso de uma forma mais formal. E lá a gente desenvolveu um curso para trabalhar ajudando mulheres em situação de vulnerabilidade.

Beni decidiu focar o trabalho em mulheres evangélicas. Praticante da religião, ela percebeu, ao longo de seus anos de experiência, que há muito histórico de agressões e maus tratos nesse núcleo. “Eu já ouvi caso de pastor dizendo que mulher tem que dar porque a Bíblia diz isso. O machismo prevalece muito dentro das igrejas”, alerta.  

Foi com o intuito de ajudar que a soteropolitana chegou ao “Segura a Curva”. A intenção era dar apoio emocional às mães apoiadas pelo projeto. Ela não imaginava que, diante de uma situação de crise financeira, acabaria como beneficiada. “Aconteceu que eu fiquei sem recurso nenhum porque senti essas dores e gastei tudo o que tinha com remédio. Nessa hora eu acabei sendo privilegiada em receber o auxílio também.

Rede de apoio necessária

Histórias, como as de Joyce, Nísia e Juliana chegam todos os dias à dupla Thaiz e Thais. As situações de vulnerabilidade intensas, muitas vezes, as obrigam a dar um tempo. Apesar de se doarem para o projeto, o desgaste emocional de lidar com tantas dificuldades reais as faz precisar parar para respirar. 

Todo mundo tem o direito de falar que não consegue, e dar o tempo que precisar para conseguir voltar. Se não tiver condição de voltar no dia seguinte, a gente se organiza. Temos que ter um cuidado muito grande porque a gente está cuidando de quem cuida. É uma demanda muito grande ainda mais com as histórias que chegam para a gente. Quando a gente tem que passar a noite com mãe no telefone que está fazendo barricada com guarda roupa na porta para proteger os filhos com medo de ser morta. É super difícil”, conta Thais Leão. 

Para a ativista, a rede de apoio formada pelo projeto — e por outros semelhantes espalhados pelo país — é, na maioria dos casos, a última instância de apoio às mães confinadas em relacionamentos violentos e maternidades solo. “Não tem polícia para contar por perto. Não tem Justiça para contar por perto. Não tem comunidade para contar por perto porque todo mundo julga, todo mundo prediz o lugar moral da maternidade e as mães que querem sair de casa porque estão em situação de violência sofrem todo um julgamento. A gente diz que a maternidade coloca mais umas cinco rodadas no ciclo de violência contra a mulher porque na hora que a mulher quer sair, todo mundo quer segurar ela ‘porque ele é o pai da criança’.” 

De mãe solteira a mãe solo

Karol Miranda tem 25 anos e um filho de seis. Ela engravidou aos 19 anos, quando estava no segundo período de faculdade. A jornalista e o pai da criança terminaram por diversas vezes ao longo da gestação e Karol não contou com o apoio da família. Hoje, com o namorado com quem está há cinco anos, ela entende o que é ter uma rede de apoio ao seu redor. “O padrasto do G. já sabia que eu tinha um filho (quando começaram a namorar) e a família dele foi muito acolhedora. Com eles, eu passei a viver algo que nunca tinha vivido antes e passei a ter um olhar diferente para a maternidade”, reflete. Ela, o namorado e o filho têm passado a quarentena juntos.

Eu mudei a minha concepção do que é a maternidade solo ao longo do tempo. A minha definição inicial era aquela de mãe solteira, que foi a mãe que eu fui até meu filho fazer um ano. Mas eu percebi que mãe solo é um conceito muito maior do que isso. Existem mães casadas, por exemplo, que são mães solo. Ficam nos ombros delas as responsabilidades maiores, os cuidados. É também aquela mãe que tem um companheiro dentro de casa mas se a criança chora ou faz birra ele manda a criança falar com a mãe ou fala que é ela quem tem que resolver. Se mãe solo é carregar essa sobrecarga.

Karol reconhece que ocupa um lugar de um certo privilégio, pois conta com o suporte do namorado. Mas o cuidado do filho em casa se intensificou com a quarentena e as aulas remotas. “A gente não consegue acompanhar o ritmo da escola. Eu tive vários problemas com o G. entregando trabalho atrasado porque eu trabalho com o computador e, quando ele tem aula, tenho que parar para ele poder usar”, conta. “Às vezes eu estou trabalhando e ele vem: ‘Mãe, M com A faz o quê?’”

O único momento em que Karol consegue estar com o filho sem se preocupar com outras questões é na hora de dormir. Ao longo do dia, ela perde a conta das vezes que se culpa por dar respostas ríspidas ao filho.

Várias vezes eu peço desculpa para ele. Vinte vezes por dia! E ele diz: ‘Mãe, tudo bem, você está estressada’ ou ‘Eu sei, mamãe, você está estressada. É o Bolsonaro, né?’ 

“Eu fico vendo essas ideias para as mães fazerem ‘caça ao tesouro’, da cobrança de ser uma supermãe, nesse período principalmente. Ninguém quer saber o que eu sou depois de horas de trabalho. Eu não quero fazer atividade nenhuma, eu quero descansar. Essa ideia da anulação da mulher é muito preocupante. De que quando nasce uma mãe, anula-se uma mulher. Isso é muito preocupante”, diz a autora do blog “Uma Mãe  Feminista“. 

Mãe solo: o isolamento do isolamento

Por conta das dores nos joelhos, Nísia sequer consegue levar os filhos para brincar na portaria do prédio em que moram. Ela considera sua maternidade uma missão de Deus porque não enxerga como poderia ter forças para lidar com as aflições e as demandas do dia a dia se não fosse pelo mover do sobrenatural. O Pai do céu é quem está presente enquanto o da Terra parece ter esquecido dos filhos que gerou. 

Eu costumo falar que são sete anos de luta sozinha com eles. Eu falo para o pai deles que ser pai não é pagar R$ 200. Ser pai é estar presente na vida deles. Eu vejo pais que participam e no meu caso não é assim. No meu caso, ele só estava pegando os filhos porque a Justiça determinou que ele pegasse. Na verdade, ele se separou de mim e se separou dos filhos. Ele só depositava o dinheiro e não ligava. Meu filho mandou uma mensagem para ele e escreveu: ‘Você não liga para a gente.’ Ser mãe solo é uma luta diária porque eu sou sozinha para tudo. O que o pai deles sempre me ajudou não dá (para pagar) a alimentação de um. Sou eu sozinha para dar um material melhor, para dar uma mochila melhor — porque eles pedem. Então, o que eu falo é que é uma missão de Deus. Deus me capacitou para tê-los e para lutar por eles enquanto eu nesta Terra estiver. A única coisa que eu peço para Deus hoje é que Ele me dê forças e cuide para fazer meus filhos formados. Na hora que eu vir meus filhos formados, Ele pode me levar. Quando eles estiverem com os canudos nas mãos, eu posso ir.

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Optamos por não expor não só os nomes completos das mães e dos filhos, como também seus rostos. Todas as imagens usadas nesta matéria são ilustrações retiradas do Instagram do projeto "A Mãe Solo", de Thaiz Leão, e da conta do projeto "Segura A Curva das Mães".


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