O debate sobre educação sexual tem tomado mais proporção na internet nos últimos dias. Infelizmente, a motivação é o triste caso da menina de 10 anos, que engravidou após ser estuprada pelo próprio tio durante seis anos.
Aconteceu em São Mateus, no Espírito Santo, e o crime foi descoberto quando a vítima foi levada ao Hospital Estadual Roberto Silvares acompanhada de um familiar. A criança revelou no atendimento que tinha sido vítima de estupro e descobriu a gravidez.
A vontade da vítima foi ouvida e o aborto seguro, executado. Dias depois, o homem de 33 anos que a violentou foi preso em Minas Gerais. Mas esses fatores estão longe de significar um encerramento para o assunto, tampouco um final feliz para a menina.
Para conseguir ter seu direito ao aborto, que é garantido por lei – a legislação brasileira permite o aborto legal quando a paciente é vítima de abusos sexuais – a decisão precisou ser levada à Justiça.
Mesmo com a liberação por parte do juiz Antônio Moreira Fernandes, que atendeu a um pedido do Ministério Público favorável à interrupção da gravidez, a vítima precisou ser transferida para Recife pois os médicos do Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes (Hucam), no estado do Espírito Santo, se recusaram a realizar o procedimento.
No meio de tudo isso, movimentos de grupos religiosos começados na internet foram parar na porta do Centro Integrado de Saúde Amauri de Medeiros (Cisam), no Recife (PE), para impedir o aborto legal da criança, sobre a crença de que era possível salvar as duas vidas: a vítima e a do feto. Foi preciso que os religiosos fossem retirados do local para que o procedimento acontecesse com segurança.
Por fim, o caso demonstrou que muito trabalho ainda precisará ser feito em prol da vida dessa menina, principalmente para garantir condições psicológicas para enfrentar o trauma do estupro, somado a culpa gerada pelo julgamento da sociedade, afinal, é possível encontrar online comentários assustadores que a culpabilizam pela violência que sofreu.
Educação sexual
Muitos também associam, de forma equivocada, a educação sexual que poderia ter salvado a menina, com motivação para o estupro. Esse tipo de discurso ainda é endossado por ninguém menos que o atual presidente da República, Jair Bolsonaro, que demonstra pensar dessa forma desde quando era deputado, quando já criticava o livro ‘Aparelho Sexual & Cia– um guia inusitado para crianças descoladas’ (Companhia das Letras), dizendo que ele fazia parte de um suposto ‘kit gay‘ criado por Fernando Haddad quando foi ministro da Educação, de 2005 a 2012, nos governos Lula e Dilma Rousseff.
Em 2017, Marielle na Câmara Municipal do Rio, já dava o recado sobre os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, que conquistamos com muita luta. O aborto é legal no Brasil em casos de estupro, risco de vida da mulher ou casos de anencefalia. pic.twitter.com/gQTflqmwnt
— Instituto Marielle Franco (@inst_marielle) August 18, 2020
Trata-se de fake news: além de esse projeto político nunca ter existido, a obra literária — originalmente escrita e ilustrada pelos franceses Hélène Bruller e Zep — tem como proposta explicar o sexo de forma didática e divertida para crianças.
Já com Bolsonaro como presidente, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), comandado por Damares Alves, lançou uma campanha com o objetivo prevenir a gravidez na adolescência sugerindo abstinência sexual.
Mas como sugerir abstinência sexual para pessoas em uma faixa etária que não sabem exatamente o que é sexo, que muitas vezes são manipuladas e coagidas a sofrerem abusos?
Em resposta ao que foi proposto por Damares, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) declarou que “a abstinência somente é saudável se for uma escolha genuína do adolescente e não uma imposição ou a única opção oferecida. É fundamental garantir espaço para a autonomia. Qualquer programa com o objetivo de reduzir a prevalência de gravidez precoce deve promover o acesso à orientação adequada”.
Pensando nisso, a página no Instagram Caos.A sugeriu quatro livros que podem ajudar nessa orientação adequada desde a infância. Ensinando, principalmente, que existem limites de acesso ao corpo da criança e como identificá-los. Confira a lista:
1- ‘Não me toca, seu boboca’, Andrea Viviana Taubman
“Dá à criança instrumentos para reconhecer uma situação de abuso e se proteger. Sem abrir mão de toda a leveza que uma história infantil pede, Tauban aborda com eficiência esse tema tão difícil. Essa publicação da Editora Aletria ainda conta com as belas ilustrações de Thais Linhares”.
2 – ‘O Segredo de Tartatina’, vários autores
“Um dos grandes aliados da violência é o segredo. Foi pensando nisso que ‘O Segredo de Tartatina’ conta, de forma lúdica, a história da tartaruga Tartarina, que foi vítima de abuso sexual e, por sentir medo, não consegue contar para ninguém. Este livro é super recomendável porque traz de forma lúdica e didática ensinamentos de como identificar casos de abuso sexual e o que deve ser feito nessas situações”.
3 – ‘Pipo e Fifi’, Caroline Arcari
“Conta a história de dois monstrinhos, uma menina e um menino. Ao narrar a diferenciação do toque afetivo e do abusivo, este livro ensina o que é mais importante: como se proteger e conceitos básicos sobre o corpo. Indicado para crianças a partir de 3 anos de idade”.
Educação sexual ajuda na prevenção do estupro
4 – ‘A mão boa e a mão boba’, Renata Emrich
“Como diferenciar toques amigos de toques abusivos? Em ‘A mão boa e a mão boba’, Renata Emrich narra através de uma linguagem simples e educativa esse discernimento tão tênue e necessário para a proteção de crianças e adolescentes”.
Karol Gomes é jornalista e pós-graduada em Cinema e Linguagem Audiovisual. Há cinco anos, escreve sobre e para mulheres com um recorte racial, tendo passado por veículos como MdeMulher, Modefica, Finanças Femininas e Think Olga. Hoje, dirige o projeto jornalístico Entreviste um Negro e a agência Mandê, apoiando veículos de comunicação e empresas que querem se comunicar de maneira inclusiva.