Tecnologia

Não há dilema: redes sociais estão matando o sexo, a democracia e a humanidade

21 • 09 • 2020 às 10:18
Atualizada em 04 • 03 • 2021 às 18:00
Yuri Ferreira
Yuri Ferreira   Redator É jornalista paulistano e quase-cientista social. É formado pela Escola de Jornalismo da Énois e conclui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo. Já publicou em veículos como The Guardian, The Intercept, UOL, Vice, Carta e hoje atua como redator aqui no Hypeness desde o ano de 2019. Também atua como produtor cultural, estuda programação e tem três gatos.

“Só existem dois mercados em que o consumidor é chamado de usuário: no tráfico de drogas e nas redes sociais”. Essa frase resume o tão falado documentário dramatizado ‘O dilema das redes’, da Netflix. A obra, que dialoga com ex-membros do Vale do Silício e pesquisadores do tema, revela que as redes sociais e todo o modelo de negócio em que baseamos o nosso consumo de informação pode ter consequências ainda mais graves para nossa existência como seres humanos.

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Filme da Netflix, uma big tech, critica as as big techs e as redes sociais. Obra gera debate, pasmem, nas redes sociais

Nos saudosos idos dos anos 2000, a misteriosa e revolucionária internet aparecia como uma alternativa à manipulação midiática e ao controle das informações por alguns grupos de mídia. Não faltam obras literárias nos anos 1990 e 2000 que abordam o problema da televisão.

A internet aparecia como um espaço livre para formulação de ideias, discussões e debates que não seriam dominados por conglomerados de mídia. A gratuidade de conteúdo moldou esse momento, que muitos “era de ouro da internet”. O espaço digital era, em muitos casos, descentralizado e, por isso, um sinônimo de liberdade.

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Enquanto os ativistas digitais se preocupavam com as leis de propriedade intelectual (SOPA e PIPA, por exemplo), uma silenciosa ameaça surgia em San Francisco, Califórnia. As redes sociais surgiam e iniciavam a nova fase da internet, dominada por três ou quatro companhias: Oracle, Facebook, Google e Twitter. Aos poucos, caímos de volta no monopólio. E agora, o domínio é psicológico:

Nir Eyal, consultor de diversas companhias do Vale do Silício, criador do modelo de negócio dessas empresas, e hoje um ativista que exige a regulação desse mercado, explica o vício.

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“As tecnologias que tínhamos se tornaram em compulsões, para não dizer vícios de verdade. O vício está no impulso de checar uma notificação. É a necessidade de visitar o Youtube, Facebook ou Twitter por apenas alguns minutos, e se descobrir apenas dando likes e rolando a timeline por um hora.” Segundo Eyal, nada disso é acidental, mas programado: “É exatamente como foi pensado pelos designers”.

As redes sociais nos fazem transar menos

O discurso que muitos podem chamar de ‘boomer’ – o de que as nossas relações estão se degringolando por causa das redes sociais – tem verificação na realidade. Primeiro, eu te questiono: você namoraria com uma pessoa que não tivesse redes sociais?

Não é incomum identificarmos que as mídias se tornaram parte necessária da nossa existência amorosa. Vale citar aqui o filósofo e teórico social sul-corean Byung Chul Han. Em ‘Agonia do Eros’, o autor fala sobre como as relações afetivas tem se transformado no neoliberalismo: para ele, enquanto o amor erótico se baseava justamente nas diferenças – como em Romeu e Julieta -, hoje ele se baseia na similitude. Apesar de seu livro ser relativamente precoce para analisar o fenômeno das mídias sociais, suas teses se verificaram de maneira constante.

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Filósofo sul-coreano Byung Chul Han apontou para o problema afetivo das redes sociais já em 2012

“Hoje, está em curso algo que sufoca essencialmente o amor, bem mais do que a liberdade infinda ou as possibilidades ilimitadas. Não é apenas a oferta de outros outros que contribui para a crise do amor, mas a erosão do Outro, que por ora ocorre em todos os âmbitos da vida e caminha cada vez mais de mãos dadas com a narcisificação do si-mesmo. O fato de o outro desaparecer é um processo dramático, mas, fatalmente avança, de modo sorrateiro e pouco perceptível”, afirma Byung Chul Han, no início de seu ‘Agonia do Eros’.

Ao entrar em um app de relacionamento ou no próprio Facebook ou Twitter, somos levados a conhecer pessoas que têm preferências de conteúdo similares às nossas. Dificilmente nos interessamos por pessoas que têm gostos de memes, por exemplo, diferentes dos nossos.

Um dos dados mais interessantes que mostra esse impacto está justamente na quantidade de vezes que as pessoas transam por ano. Um estudo de diversos pesquisadores publicado no Jama Network que analisou a vida sexual de mais de 10 mil pessoas nos EUA mostrou que um terço dos homens e um quarto das mulheres não fez sexo no ano anterior ao estudo.

O salto em comparação a 2008 é de 8% entre as mulheres. O número quase dobrou entre os homens. E qual o motivo que pode justificar isso? O que poderia ter alterado todas as nossas dimensões relacionais desde então? Isso. As redes sociais. A partir de sua ascensão desregulada e caótica, as redes sociais dificultaram e alteraram as dinâmicas de como nos relacionamos e isso é fundante para a sociedade.

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Milhões de pessoas ao redor delegam a possibilidade de um amor a um algoritmo (e isso está fazendo a gente transar menos)

É só pensar como rejeitamos ou encorajamos nossas relações através de mensagem no WhatsApp. “Se ela não me responder em x horas, ela não me quer mais”. “Ele sempre responde na hora, é muito chato, está desesperado”. 

Mas você se engana ao pensar que isso é um problema seu ou da sua amiga. Na verdade, isso demonstra como as redes sociais são programadas. O Facebook não está pensando se o seu relacionamento é saudável ou sobre como você pode se tornar um ser humano melhor; ele se importa com seu tempo de exposição na tela e com o quanto você vai ver os ads que ele te mostra.

Nossa democracia está em risco em troca de likes

Se você acompanhou o debate que cercou as eleições presidenciais dos EUA em 2016 e as brasileiras em 2018, deve estar plenamente consciente que os conglomerados de mídia – em especial o Facebook e o Twitter – tiveram impactos diretos nos resultados das urnas.

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Primavera árabe inaugurou a era das redes sociais na política e seus efeitos até hoje são caóticos para Egito, Líbia, Síria e Iêmen

Desde então, diversas parcerias tem sido anunciadas. Agências de checagem e outras dezenas de fundações e organizações tentam criar dispositivos para tentar regular a qualidade das informações disponibilizadas nas redes sociais. Os dados, entretanto, mostram que nada mudou.

Durante a pandemia de covid-19, o documentário viral ‘Plandemic’, em que uma médica estadunidense afirmava que a pandemia era um plano chinês e uma grande conspiração, teve mais de 8 milhões de visualizações. Os 10 links mais visitados do Facebook são diariamente dominados pelos sites conservadores dos EUA e por personalidades pró-Donald Trump. O crescimento da tese do Pizzagate, o movimento anti-vacina e o terraplanismo é observado após o surgimento desse modelo de negócio.

Manifestações anti-vacina e contra o uso de máscaras se espalham por grandes cidades durante a pandemia (foto em Barcelona)

O engenheiro de software Guillaume Chaslot denunciou ao Guardian, em 2016, como o desenvolvimento do software de recomendação do Youtube tendia a promover vídeos com conteúdo mais extremista que fomenta a propagação de ideias mais radicais e de um mundo mais polarizado. Conteúdos mais radicais ganham mais atenção, e conteúdos mais radicais ainda serão sugeridos.

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“O Youtube parece a realidade mas, na verdade, faz você gastar mais tempo online. O algoritmo de recomendação não é capaz de otimizar o que é verdadeiro ou balanceado, o que é saudável para a democracia”, afirma o engenheiro de software ao The Guardian. Ao criar o algoritmo, ele reforçou a ideia: “A prioridade sempre foi o tempo que você gasta em um vídeo. Todo o resto é considerado uma distração”.

No Brasil, o projeto de lei do Movimento Acredito para barrar as fake news esbarra justamente nesse problema: o PL, aprovado com rapidez no Senado e carente de amplo debate público, delegava às empresas que comandam os bancos de dados e as redes sociais a se regularem. Mas elas não seriam capazes disso porque toda sua existência como negócio depende desse tipo de conteúdo.

“As dinâmicas da economia da atenção – como operam as empresas de redes sociais – estão minando o desejo do ser humano, seu devir. Se a política é uma expressão do desejo de mudar o futuro da humanidade, em níveis individuais e coletivos, a economia da atenção está definitivamente acabando com o tecido que une a democracia”, afirma James Williams, ex-executivo da Google ao Guardian.

Nossa existência também

Setembro amarelo é o mês de conscientização sobre os problemas de saúde mental. Todo mundo sabe que os índices de depressão tem aumentado na sociedade e o transtorno é chamado de doença de século por alguns especialistas.

Não é como se esses números tivessem alguma relação com as redes sociais, né? Pois bem. Nos EUA, crescimentos acima de 70% em casos de automutilação e suicídio foram registrados entre jovens de 10 a 19. Qual o ponto de virada nos números? 2010, o ano em que o Facebook explodiu.

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É fato notório que Snapchat, Facebook, Instagram e Twitter nos quebram na auto-estima e aceitação pessoal todos os dias. Os likes insuficientes, a falta de foguinho nos stories e uma constante guerra híbrida de discursos políticos não podem deixar uma pessoa muito bem da cuca.

O também recente aumento por pedidos de terapia  – o ‘faça terapia’  se tornou mantra no twitter – mostra um pouco dessa faceta. As redes sociais são um canal para falar de saúde mental, mas também participam diretamente na motivação desse adoecimento coletivo que estamos vendo em uma sociedade moderna.

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O Facebook de Mark Zuckerberg é apontado como principal vilão em ‘O Dilema das Redes’; o problema, entretanto, está em todo o sistema

A própria existência do like influencia isso: “É um caça-níqueis. Se os jogadores soubessem que nunca ganhariam, eles nunca jogariam. A ideia de uma possível recompensa futura mantém as máquinas funcionando. É isso que acontece nas redes sociais: você não sabe quantos likes vai receber, quem vai dar like na sua foto. O resultado desconhecido e a possibilidade de alcançar seus desejos mantém os usuários engajados nos sites.”, afirma Jacqueline Sperling, doutora em psicologia clínica pela Universidade da Califórnia e chefe do departamento de saúde mental do McLean Hospital.

“Por que essa pessoa curtiu minha postagem e a outra não? A busca por validação na internet serve como uma substituta para as conexões que deveríamos estar fazendo nas redes sociais”, completa.

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Com o fortalecimento da inteligência artificial nos próximos anos e a falta de debate sobre regulação nas principais democracias mundiais, as tendências que falamos nesse texto podem formar uma coalizão terrível; uma geração mais deprimida do que já estamos, que transa menos do que o pouco que já transamos, que entende menos de política do que o pouco que já entendemos e que acreditará ainda mais em teorias da conspiração do que já acreditamos.

‘O dilema das redes’ é um filme que termina com a tônica de que há uma solução, mas é incapaz de dizer qual ela é de fato. A obra pede para que se tenha um uso mais racional das redes sociais, mas, infelizmente, só isso não será possível para conter os efeitos perversos da loucura em que estamos vivendo. O dilema entre a facilidade da tecnologia e os efeitos perversos que ela tem não parece tanto um dilema, no fim das contas.

E talvez seja uma boa desativar as notificações do celular, mesmo.

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Fotos: Destaque: Reprodução/Netflix  Corpo do texto: © Getty Images


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