Arte

Ismael Ivo: Deus negro do Ébano que o Brasil não conhecia e o mundo reverenciou

09 • 04 • 2021 às 11:01
Atualizada em 12 • 04 • 2021 às 09:57
Kauê Vieira
Kauê Vieira   Sub-editor Nascido na periferia da zona sul de São Paulo, Kauê Vieira é jornalista desde que se conhece por gente. Apaixonado pela profissão, acumula 10 anos de carreira, com destaque para passagens pela área de cultura. Foi coordenador de comunicação do Projeto Afreaka, idealizou duas edições de um festival promovendo encontros entre Brasil e África contemporânea, além de ter participado da produção de um livro paradidático sobre o ensino de África nas Escolas. Acumula ainda duas passagens pelo Portal Terra. Por fim, ao lado de suas funções no Hypeness, ministra um curso sobre mídia e representatividade e outras coisinhas mais.

Ismael Ivo nos deixou. O célebre bailarino e coreógrafo saiu de cena, discretamente, aos 66 anos. O embaixador da dança no país onde a cultura ainda é, infelizmente, tratada como uma espécie de produto de segunda linha, faleceu vítima da covid-19

Ivo se junta ao panteão de cabeças pensantes arrancadas do convívio de um país cada vez mais carente de cultura. De Ismael Ivo. Foi assim com Aldir Blanc, com os atores João Acaiabe e Gésio Amadeu; Nicette Bruno e Ubirany Félix e tantos outros que sucumbem vítimas de um governo negacionista e que insiste em minimizar os efeitos de uma pandemia que já matou quase 400 mil pessoas

Pouca gente sabia, mas Ismael Ivo estava internado na UTI do Hospital Sírio-Libanês há cerca de um mês. O coreógrafo chegou a ser intubado, mas não resistiu aos efeitos do vírus. 

Ismael Ivo foi um grande representante da raça negra

A cor da noite 

Ismael Ivo tinha a cor da noite. Homem negro, com os músculos definidos pelo trabalho de mais de 30 anos de carreira apenas no exterior, Ivo era a definição perfeita de um Deus do Ébano, como bem cantou o Ilê Aiyê. 

Como todo o representante da raça, sua vida foi dura. Ismael Ivo nasceu na periferia da Zona Leste de São Paulo, Vila Ema, precisamente. Filho de empregada doméstica, foi criado apenas pela mãe e desde de pequeno encarou as dificuldades impostas aos que nascem com a pele da cor da noite. 

O Brasil não conhecia Ismael Ivo. Assim como acontece com representantes de variados segmentos artísticos, o bailarino teve seu talento reconhecido no exterior, para onde embarcou em 1984. 

Ismael Ivo desembarcou em Viena, onde fundou ao lado do diretor artístico Karl Regensburger, o festival de dança contemporânea “ImPulsTanz”, na capital da Áustria. O Brasil, enquanto isso, dava os primeiros passos para sair de uma ditadura sanguinária e que atingiu principalmente a arte. O exílio se tornou comum para expoentes da nossa cultura como Gilberto Gil e Geraldo Vandré. 

Ismael Ivo viveu 33 anos dançando e fazendo história no exterior

À frente de um dos maiores festivais de dança da Europa, Ismael Ivo viu sua vida se transformar por meio da dança. No início dos anos 2000, Ivo se tornou o diretor da “Bienal de Veneza”

“O Brasil já é uma Babilônia de raças e culturas. Não se pode viver aqui sem intuição; intuição a gente come com arroz e feijão”, declarou Ivo em entrevista à Revista Cult. 

Os passos deste homem negro ao encontro da história seguiram. Ismael Ivo desembarcou na Alemanha, onde se tornou o primeiro negro e estrangeiro à frente do Teatro Nacional Alemão, na cidade de Weimar. 

“Delírios de uma Infância”

Ismael Ivo passou 12 anos na Alemanha, mas sempre manteve conexão com sua terra natal. Ele trouxe para São Paulo o espetáculo “Othello”, de William Shakespeare, e se apresentou ao lado do grupo de dança do Teatro Nacional da Alemanha. 

Para muitos, “Delírios de uma Infância” foi seu melhor trabalho. O espetáculo estreou em Berlim, em 1989 e reúne, por meio da dança, as impressões de uma criança negra nascida na periferia do Brasil. Ismael Ivo condensa memórias afetivas de sua vida pessoal como a ancestralidade negra e o impacto da escravidão na história de um dos países mais racistas do mundo

Ismael Ivo falou sobre “Delírios de uma Infância” em participação recente no programa “Conversa com Bial”, da TV Globo. 

Foi uma associação de ideias, e como até hoje faço coreografia associando diferentes elementos e ideias convergentes, então, no delírio eu vejo ao meu redor, onde eu nasci, o que eu estou vendo e vivendo e ao mesmo tempo associando com a canção de Gustav Mahler, “Canções para uma criança morta. 

A reaproximação com o Brasil aconteceu tarde, precisamente em 2017 quando, finalmente, assumiu a direção do Balé da Cidade de São Paulo. Ismael e a história se encontram novamente, já que ele se tornou o primeiro negro à frente de uma das companhias de dança mais importantes do país. País este com 54% de pretos e pretas, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 

A gestão de Ismael Ivo aproximou a cidade de São Paulo de um de seus símbolos. O Theatro Municipal, ícone de beleza e segregação. O bailarino dirigiu “Corpo Cidade”, que usou a dança para falar da relação entre a metrópole e as pessoas que nela vivem. Foi um sucesso, principalmente pelos ingressos a partir de R$ 20. 

O racismo estrutural, porém, esteve sempre na cola de Ismael Ivo. O bailarino acabou demitido do Balé da Cidade de São Paulo após acusações de assédio moral, negadas com veemência por ele. 

“Minha carreira artística e profissional é imaculada. No mundo todo, por onde passei, sempre respeitei e fui respeitado como ser humano e como artista. Manchar minha imagem tornou-se uma verdadeira obsessão. Tanto que mesmo após eu ter sido inocentado pela comissão especial continuo sendo atacado e impedido de retornar ao cargo que ocupava”, se manifestou em nota na época. 

Ismael Ivo foi o 1º negro à frente do Balé da Cidade de São Paulo

O Brasil não conhecia Ismael Ivo, que nos deixou cedo demais. Sua obra, porém, impactou dezenas de milhares jovens negros com o sonho de fazer carreira na dança. Vamos enegrecer os palcos! 

Caso de Ingrid Silva, primeira bailarina negra do Brasil a chegar do Dance Theatre of Harlem, em Nova York, nos Estados Unidos. 

Eu comecei no balé em uma comunidade próxima da minha residência, na Vila Olímpica da Mangueira, em um projeto social chamado Dançando para não Dançar. Até então todos eram parecidos comigo e com o resto do mundo. Quando fui para outras escolas e ganhei bolsa estava na zona sul do Rio. Bem elitizada. Eu era minoria, nunca entendia e nem questionava sempre achei normal até chegar ao Dance  Theatre of Harlem, onde todos se pareciam comigo, disse em Ingrid entrevista ao Hypeness.

Que a memória e trajetória de Ismael Ivo sirvam para que o Brasil se inspire e compreenda que não há possibilidade evolutiva sem a arte. Mas a arte que inclui e luta contra preconceitos históricos, como o racismo. O resto, caros leitores e leitoras, é balela e tem compromisso com a opressão. 

“A cultura é um elemento transformador da vida”, Ismael Ivo. 

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Fotos: foto 1: Reprodução/fotos 2 e 3: Reprodução/Facebook Oficial 


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